Por razões muito pessoais tenho tido mais tempo para ver televisão e, sem quase dar por isso, eis que, sobretudo em Maio, devorei western atrás de western como nunca antes acontecera.
Este facto fez-me regressar às minhas aulas de filmologia e ao momento em que a produtora Bison, no final da primeira década do século passado, se instalou na Califórnia – à boleia das experiências de William Selig – tendo aí encontrado todas as características do que viria a ser a épica norte-americana. Em poucos meses produziu mais de duas centenas de filmes, alguns filmados num único dia geralmente com realização de Charles French. Paisagens, cenários e figurantes naturais, entre os quais convém destacar as tribos Cahuenga e Cherokee, contribuíram para que a pequena aldeia de Hollywood se transfigurasse e nela aparecessem protagonistas, como Thomas Ince e William Hart, que emprestaram ao género uma desgarrada fotogenia. Depois da primeira grande guerra mundial, o epicentro do cinema deslocou-se da Europa para a América e os westerns tornaram-se rapidamente numa gesta universal, de que John Ford foi um cultor único até ao fim dos anos sessenta (tendo até as vanguardas europeias da época revisto na sua obra a graça do chamado “cinema de autor”).
Por vezes interrogo-me sobre o papel da violência que atravessa os westerns. Ela faz parte íntima do género, mas, apesar da sua predominância, nada a torna mais implacável do que a que grassa no quotidiano da nossa actual experiência da imagem.
A violência do western desenvolve-se num tipo de lógica de “gag” porque corresponde quase sempre a lances ficcionais que desarrumam uma certa expectativa de normalidade. Tudo nessa violência tende para o exagero, ou seja, para a hipérbole. Até o modo desabrido com que as vítimas dos sucessivos tiroteios voam ao caírem por terra espelha bem o espírito pioneiro do “wrestling”.
A violência que perpassa nos terminais de imagem do nosso tempo – que já interiorizámos e a que já nos habituámos – é dominada por um apelo muito mais cru, directo e cruel, pois tende a colar-se ao horizonte do que consideramos ser a normalidade (ver os rockets no médio-oriente ou ver uma série em que uma cidade inteira explode é, hoje e dia, digerido no sofá como se fosse quase a mesma coisa).
Existe uma segunda característica da violência dos westerns que a torna relativamente inocente. Trata-se do formato – ou do jogo – que a prefigura e cujo contexto distingue, de um lado, um domínio selvagem (onde se insere a paisagem por domesticar, assim como os índios autóctones que a habitam e a alma bravia dos vilões que a fustigam e exploram) e, do outro lado, um domínio da lei (onde se inserem os heróis solitários na representação de uma idealidade ou então os “sherifs” na representação de uma ideia de estado). Esta oposição de base é sempre vivida em pequenas localidades de desenho efémero, todas com seu o “saloon” enquanto ponto de encontro entre uma relativa estabilidade e a iminência dos forasteiros desordeiros que a virão pôr em causa.
Na maior parte das séries que hoje visionamos nos canais de “streaming” ou na tv clássica, a violência surge, ao invés, fora de qualquer contexto (ou de qualquer jogo narrativo pré-definido) e, por isso, dá à carne e ao sangue um tipo de verossimilhança muitíssimo distinta, porque tendencialmente hiper-real e dissociada de uma clara empatia de jogo.
A violência dos westerns tem muito que ver com a violência algo gratuita que se lê nas páginas da Ilíada e que, neste último caso, chega a cansar (tantos são os combates corpo a corpo que por vezes se diluem na recorrência retórica). O que une ambos os registos é a necessidade de vincar a origem duma história e o seu fulcro inevitavelmente heróico.
A épica rasga a vida para a colocar sob perspectiva e, por essa razão, chama a si um ritual de violência, independentemente da sua verossimilhança. Muito diferente de um ritual de violência – criado por irrealidades que metaforizam um desejo de superação – é o verdadeiro culto da violência da nossa era que mistura realidade com ficção, contextos com factos e a força do hábito e da repetição com a (mais suprema) indiferença. Se um ritual tende a projectar e a socializar um determinado mundo nas experiências individuais, a virtualização do mundo hipnotiza, adormece e gera um perigoso sentido de depreciação.
Ver westerns tem sido par mim uma forma de decantar e de purgar tudo aquilo que a tecnologia e a aparente pluralidade da rede nos coloca – a todos – diante dos olhos.