Pipoca, Meme, Poli, Cabrita, Russo e Frame tentam proteger a sua segunda casa, mas a tarefa não é fácil. É a Fonte da Telha, uma praia no concelho de Almada com vista para o Cabo Espichel.
São 11.30h, o sol irradia e aquece a manhã de inverno. As ondas formam-se no azul do oceano com pouco vento. Depois do Bar Bambu, já se avista a entrada feita de acácias, iluminada pelo brilho da praia. Os degraus de areia são sustentados por madeira, assim como os ecopontos. Logo a seguir, uma estátua havaiana dá as boas-vindas. Daniel, 43 anos, tem a alcunha de Cabrita. Está sentado à mesa a observar o mar. Apesar do ambiente de paz, ao som do rebentar das ondas, sente-se um vazio. “Estávamos na praia, quando soubemos que o José Luís tinha falecido”, diz emocionado.
Chamavam-no ‘Arrozinho’. Morava numa barraca com más condições na praia da Fonte da Telha. Embora tivesse os seus problemas, criou uma ligação próxima com os jovens. Sempre que iam surfar, faziam questão de o ver. O crescente carinho e amizade partilhados fez com que, anos depois, o grupo de surfistas construísse uma casa para o amigo.
Após a morte de José Luís, houve pessoas interessadas em ocupar a casa. “Fizeram-se passar por seus familiares”, conta Daniel. Tanto ele como o grupo não queriam desconhecidos naquele espaço. “Juntámos malta amiga e decidimos criar uma associação. Fazer trabalho comunitário que nos permitisse ficar aqui e ser respeitados pela comunidade.” Nasce assim a Associação Arroz de Polvo, em 2021.
Atentos às ameaças
De boné, de t-shirt ou de fato de surf, com ténis ou descalços… é este o estilo que os caracteriza. São 12:00h, alguns vão chegando da surfada dada pela manhã. É o caso de Bruno e Luís, batizados como Meme e Frame. Vão trocando impressões de como estão as ondas com Daniel. Entretanto, chega Poli. Luís mostra os desenhos que fez para as t-shirtsda associação. Pipoca e Russo juntam-se também e comentam o trabalho de Frame. Há um clima de boa energia e o tema não é só surf. Falam do futuro da Arroz de Polvo.
Apesar de trabalharem em áreas diferentes, todos contribuíram para aquele lugar. Existem 40 elementos na associação. “Sempre fomos desenrascados. Tentamos ao máximo reutilizar materiais. Tudo é construído com as nossas mãos”, conta Poli, orgulhoso.
Definem-se como os guardiões da Fonte da Telha. O seu papel é alertar. Estão atentos às alterações que possam modificar a praia e à sua má utilização. “Isto é um caos. No verão, há muita gente. Não há polícia nestas alturas”, confessa Cabrita, descontente. Luís conta que, no final do verão, a Proteção Civil interveio: “Impediam as pessoas de virem para aqui. Esta zona fluía. Podiam-no ter feito há mais tempo.” Russo dá o exemplo das autocaravanas. Apesar do sinal de proibição, há cada vez mais destes veículos a pernoitar e a poluir a zona. “Temos feito denúncias à GNR. Já os multaram”, comenta.
Sara, 41 anos, trabalha há 10 anos na Fonte da Telha. É dona do Bar Kailua, um dos últimos bares da praia, no sentido sul. Considera que sempre houve muitas pessoas a visitar este lugar. “Não conseguimos virar costas ao turismo”, afirma. Diz que a solução é oferecer “condições, sem perder o lado natural da região”. Sugere que os turistas devem visitar o espaço, conhecendo os seus limites.
Do lado norte da praia avista-se um problema, que o distingue do lado sul: as construções ilegais.
Sérgio é designer gráfico. Chamam-no Pipoca. É o presidente da associação. Descreve essas construções como barracas. “Conhecemos a comunidade piscatória que lá vive. Temos uma boa ligação com eles, mas há gente nova que não conhecemos. Na altura da Covid, houve uma ocupação gigante”, comenta preocupado. O medo de todos é visível. Temem construções no lado sul, onde fica a associação. A ocupação ilegal e o abandono fazem parte da “normalidade” da Fonte da Telha.
Há outras questões que preocupam o grupo, sobretudo a Frame. “Daqui a um ou dois anos, pode haver alguém que dê dinheiro à câmara e isto deixa de ser área protegida. Fazem um greenwashing e constroem um eco resort. Estão a fazê-lo em Tróia”, exprime frustrado. “Um ensaio para isso são os passadiços. É uma preparação.” Para Luís, a obra veio destruir a mata da Arriba Fóssil. Prejudica os animais que lá vivem. “Já há lixo naquela zona”, comenta.
Foi publicado no verão de 2022 um artigo sobre os passadiços da Mata dos Medos, no Boletim das Vilas, pela Junta de Freguesia da Charneca da Caparica e Sobreda. No documento lê-se que a construção tem como objetivo “promover visitação de forma mais ordenada, menos impactante mas, simultaneamente, estender a possibilidade a utentes com mobilidade reduzida e condicionada”.
É preciso sensibilizar
A missão é contribuir para uma sociedade melhor. Focam-se nos mais novos, sobretudo crianças com dificuldades socioeconómicas. “É a partir das crianças que as coisas se modificam. É importante falar-lhes da questão ambiental e da sociabilização”, afirma Poli. Querem passar os valores da amizade, da sustentabilidade e do respeito. Trabalham em cooperação com outras associações, como a Planet Care Takers e a 4 Unity Project, sediadas na Margem Sul. “Fizemos um evento com 14 crianças das Aldeias SOS. Assistiram a uma sessão de autodefesa, fizeram ioga e pintaram o mural da baleia. Depois tiveram aulas de surf e recolheram lixo da praia. A ideia é que socializem, se dispam dos seus medos”, conta, mostrando-se realizado.
Todos espelham gratidão e felicidade naquilo que fazem. Falam da alegria das crianças nas atividades. “Os miúdos não querem sair daqui. Têm liberdade”, conta Ricardo, de coração cheio.
“Na última limpeza de praia recolhemos cerca de 820 quilos”, diz Frame. Contam que a autarquia lhes deu sacos do lixo. Apesar do reconhecimento da associação, admitem a falta de apoio da Câmara de Almada. “O organismo público não permite o reconhecimento legal, pois estamos numa zona protegida. É politicamente um contrassenso”, explica Poli.
O incêndio
“Aqui não há água, não há luz. No dia em que supostamente incendiaram a casa, não havia carros. O vento vinha de sul. Quem o fez, sabia o que estava a fazer. A casa foi a única que ardeu. Havia outros materiais muito mais inflamáveis que não incendiaram”, conta Ricardo.
A causa do incêndio não é conhecida, mas Russo tem dúvidas quanto à sua origem. A frustração e a tristeza predominam nos seus olhos. “Senti que uma parte saiu dentro de mim… que perdi.” Está presente desde o início. Ajudou a construir a casa e a formar a associação. Confessa que há muito trabalho envolvido. Dinheiro que saiu do próprio bolso e dos amigos. “A casa era a história do José Luís”, diz, emocionado. “Perdemos cerca de 20 mil euros em materiais, pranchas e fatos que utilizávamos nas atividades”, acrescenta.
Sara foi a primeira a chegar ao local. “Os meus empregados ligaram-me a avisar. Demorei cinco minutos a chegar. Só lá estava a GNR, mais ninguém. Liguei logo para os elementos da associação.”
“Estava no sofá. Olho para o telemóvel e vejo um vídeo da casa a arder.” Frame fez 44 anos no dia do incêndio. “Quando cheguei, já havia bombeiros e GNR.” Luís não esconde o desalento. Conta que tinha guardado a prancha e o fato dentro da casa, pois no dia seguinte ia surfar.
O sentimento de angústia é partilhado por todos, sobretudo pelos filhos. Tomás, Pedro e Tiago, de 20, 19 e 17 anos, respetivamente, cresceram neste lugar e ajudaram na construção. Habituaram-se desde novos a brincar na praia, a ouvir o mar e a respeitar a natureza. “Todos os dias, vínhamos para aqui depois da escola. Era um escape”, confessam num tom nostálgico. Sentem-se abalados. Paira um vazio no sítio onde criaram memórias de infância. “O pior foi vir aqui e olhar para isto sem nada. Não é a associação.”
O reerguer da Polvo
Apesar da tristeza, o futuro é promissor. Sobreviveu o mural do José Luís. Para todos representa a esperança, a força e o “reerguer da Polvo”. “Temos fé “, admite Pipoca.
Meme diz que o objetivo é construir uma sede onde possam fazer atividades com as crianças no inverno. Confessa que o dinheiro é pouco. Após o incêndio, criaram um crowdfunding. Estão a vender peças artesanais feitas por eles e t-shirtscom o logótipo da associação. “Não vamos atrás do facilitismo! Vamos construir [a sede] com as nossas próprias mãos. É a nossa identidade”, acrescenta Poli num tom altruísta.