Quarenta e oito pessoas, durante duas horas, seguem as instruções de um ensaiador no Quartel dos Bombeiros da Graça. Não são bombeiros, polícias, nem militares. Vestem fardas apenas duas vezes por ano, os pés acusam dores e o corpo cansaço. A alegria, o esforço e a dedicação marcam presença entres os marchantes da Graça.
São 21h35 e as vozes já se ouvem nos corredores do quartel. “Já perdi a conta a quantas pessoas vejo nesta altura do ano! Há sempre caras novas mas os que já cá estão há muitos anos são irreconhecíveis. Nem que seja por falarem muito alto nos corredores! (risos)”, diz o tenente Ribeiro. “É uma alegria constante. Nunca ganham o primeiro lugar, mas estão aqui de alma e coração anualmente. E isso é de tirar o chapéu!”
A mais nova tem 15 anos e o mais velho 50. Não há limite de idade, desde que se saiba mexer. Também não é preciso ter uma voz afinada, o importante é saber a letra. À volta dos músicos, os homens separam-se das mulheres. Um sexo para cada lado e está iniciada a batalha vocal: quem canta mais alto? Quem puxa mais pela marcha? Não há dúvida que as mulheres ganham por capacidade vocal. Vasco Cruz, ensaiador da Marcha da Graça, esboça um sorriso impossível de conter. Estão dados os primeiros passos.
Os primeiros passos
Um a um, homens e mulheres são chamados para ocuparem os seus lugares. A estrela dá lugar a uma fila de marchantes: homens de arco primeiro, os volantes só tinham de os seguir. Passo a passo, a entrada da Marcha da Graça está concluída. Teresa Marina, conta 27 anos de marcha. Sendo a marchante mais antiga, explica como funciona a lógica da Graça: “O ensaiador encaixa os marchantes no sítio certo, mostra o que devemos fazer passo a passo, e nós só temos de fazer igual, mas com os nossos pares. Depois, fazemos a entrada, as quatro marcações e a saída. Parece muito fácil! (risos) Na realidade de fácil não tem nada, e, a maioria das vezes, o cansaço fala mais alto.”
O vento e o frio que se fazem sentir diariamente não deixam que ninguém vá para casa. E mesmo quando chove, a solução é imediata. Retornam até ao Clube Desportivo da Graça, coletividade organizadora da marcha, e fazem ensaios de canto. Agasalhados, os marchantes começam o ensaio cheios de energia. O pé esquerdo é sempre o primeiro a levantar e ao som do cavalinho, tudo começa a ganhar forma. A garrafa de água acompanha a maioria dos marchantes, “Ao longo de duas horas o corpo pede hidratação! (risos) Fazemos imensos movimentos repetitivos, não estamos parados um único segundo” , diz em tom divertido Pedro Lourenço. Com o coração dividido entre São Vicente e a Graça, confessa gostar de ir em ambas, mas tem de optar por uma todos os anos. Rafaela Silva, de 15 anos, está há dois na Marcha da Graça. Diz que “é bom poder vir relaxar e, ao mesmo tempo, trabalhar a sério depois do jantar. E fiz amigos que, de outra forma, nunca teria conhecido. Somos uma família!”
Em 1935, ganhou o primeiro lugar em conjunto com todas as outras marchas populares. Em 1990, garantiu o 14º lugar mas só em 1998 conseguiu um lugar entre os dez primeiros, ficando em 8º. 2001 marca a melhor classificação, com um 7º lugar, e 2003 novamente em 8º. Só em 2014 conseguiu igualar este marco, passando para os dez primeiros.
Tudo entre família
Luís Andrade, presidente do Clube Desportivo da Graça, vê todos os anos gente nova a percorrer os corredores do clube. Sejam novas ou velhas, a alegria no rosto destas pessoas é constante. E não há quem suporte ver uma cara triste nos ensaios. É obrigatório estarem sempre de sorriso no rosto, caso contrário “há sempre um ou outro que se arma em chato para poder ver alguém sorrir. Aqui somos família que de outra forma não teríamos. E não há espaços para desistências”, afirma Andreia Pacheco, uma das marchantes da “velha guarda”.
E se há coisa que a Marcha da Graça não faz é desistir. A concurso nas Marchas Populares de Lisboa desde 1935, em que todas as marchas levaram a vitória para casa, a sua melhor classificação é um 7º lugar, em 2001. Todos os anos, o ensaiador e os marchantes, apostam em fardas, arcos, letras e músicas, coreografias e padrinhos, mas nada parece chegar para melhorar o seu palmarés mais alto. Em 2014, a marcha ganhou um prémio de especialidade pela sua letra, ainda que ex-aequo com Alfama e Castelo, e subiu ao 8ºlugar. “Estas pessoas trabalham em conjunto durante um mês e meio para um objetivo. Por vezes, atrapalham-se porque têm que se adaptar uns aos outros, mas, no fim, tudo funciona em harmonia”, diz Vasco Cruz. “Lutamos por um objetivo: o primeiro lugar. Se não conseguirmos, para o ano estamos cá outra vez. O importante é não desistir.”
A ajuda está sempre presente ao longo deste mês e meio de ensaios. Há quem chegue sem saber marchar ou alinhar, e os marchantes mais antigos disponibilizam-se de imediato para remediar a situação. Com os marchantes mais novos, vão para um lugar mais discreto e puxam uns pelos outros, de modo a que tudo saia sincronizado. Os pés, as mãos, a anca, tem tudo de seguir para o mesmo lado. Ao mínimo deslize, tudo pode ficar comprometido.
Bons filhos à casa tornam
Filipe Coelho, marchante há 15, está de volta a casa. Em 2012, tomou a decisão de sair da Marcha da Graça e de se inscrever na Marcha de Alfama. “A Graça é o meu bairro, a minha casa, mas sempre quis experimentar algo diferente. Alfama também é parte da minha família e quis saber como era representar um bairro tão icónico como aquele! Ganhei dois anos seguidos, mas não foi uma alegria assim tão grande. Não era a minha marcha…” O que o fez voltar à sua casa “o meu filho vai ser mascote da marcha. Sempre disse que quando isso acontecesse, voltaria para a Graça. E nada me dá mais prazer e alegria do que descer a Avenida (da Liberdade) com ele. Tem quatro anos e já vibra com este mundo, o que é fantástico!”.
Como Filipe, muitos outros saem apenas para experimentar outras sensações. A de ganhar, a de dançar o vira, a de cantar o fado. Falamos de Alfama, Madragoa e Mouraria. Houve quem fosse e não retornasse, mas nem por isso a Marcha da Graça ficou a perder: ganhou lugares para pessoas novas, é um dos bairros com gente mais jovem. Andreia Lourenço também decidiu um dia sair da marcha que a viu crescer e experimentar Alfama. “Andei na escola com muita malta de Alfama, Mouraria e Bairro Alto. Em 2007, comecei a dar-me com mais gente de Alfama e todos diziam que tinha de experimentar um ano lá. Em 2008, ganhei a coragem necessária e inscrevi-me. Estive lá até 2010, fiz amigos, ri imenso e vivi momentos inesquecíveis. Até ganhei alguns anos, mas não me sabia assim a tanto…Não era o meu bairro, nem a minha marcha.” Em 2011, Andreia regressou à Graça e diz que “a sensação de estar em casa é óptima.”
Mas a marcha não se faz só de idas, retornos e sangue novo. Há quem saia do seu bairro, todas as noites durante o mês de maio, para dar energia a outra marcha. Filipe Coutinho, marchante dos Olivais, decidiu sair da sua marcha em 2012. “Na altura tinha trabalho fora de Lisboa durante a semana e só podia vir a um ensaio por semana, que era à sexta-feira. Nos Olivais não me aceitaram por essa razão. E era impossível abdicar do meu trabalho por causa da marcha. A minha namorada convenceu-me a vir para a Graça e cá estou eu no meu terceiro ano.” No entanto, Filipe também já não se vê fora desta casa “Acolheram-me quando precisei e, mesmo quando cometi alguns erros, perdoaram e aceitaram-me de volta. Só uma verdadeira família faz isso, só algo muito sério me tirava daqui.”
Este ano, o tema das Marchas Populares de Lisboa é “a capital”. Gimba é o autor da Grande Marcha de Lisboa, “Santo António Canta a História”. Vasco Cruz é o letrista da Marcha da Graça e considera-se confiante e determinado a ganhar algo mais do que o prémio de letra este ano: “Não há como saber quem ganha ou perde. Mas dou sempre o meu melhor como coreógrafo, letrista, cenógrafo ou figurinista. Eles dão o melhor a representar tudo aquilo que faço para eles e para o bairro. Gostam mesmo muito disto e esforçam-se imenso. Mas o esforço nem sempre compensa.”
Amor e dedicação
A Marcha da Graça é constituída por um ensaiador, cinquenta marchantes, entre eles dois suplentes, dois mascotes, uma porta-estandarte e um cavalinho.
O mês de Maio já vai quase no fim. As quatro marcações estão feitas e os marchantes já foram à prova final dos fatos. Os nervos estão mais do que à flor da pele à medida que a hora se vai aproximando. Observações como “alinha!”, “mas ‘tás a dormir?” ou”já não te disse para alinhares?” são cada vez mais frequentes. O tom de voz dos marchantes e do ensaiador é também mais elevado. Muitos conseguem controlar-se e pedir desculpa após a gritaria, mas para outros não é assim tão fácil. Tudo o que fazem, gritam e expõem é para o bem da marcha. E há quem leve este mês e meio muito a sério. “Entendo que para quem é novo seja difícil, mas há que aprender. Ao fim de um mês, as coisas já são mecanizadas, os movimentos, o canto, o alinhamento. E há sempre aquelas pessoas a quem isto não diz nada, estão aqui por diversão, mas não é o meu caso. É o meu oitavo ano na Graça e sempre dei tudo por tudo para conseguir algo melhor para o meu bairro” , diz Leonor Antunes. E a determinação não fica por aqui: “Já perdi a conta a quantas lágrimas deitei por algo que a maioria das pessoas nunca irá entender. É um amor que não tem explicação. A partir de Abril, a minha cabeça só pensa nas duas horas em que estamos aqui diariamente. A marcha é mesmo parte da minha vida, não me vejo sem esta correria, este stress, sem as longas horas de espera atrás de uma cortina. O meu bairro é algo incomparável, não há nada que se compare ao amor que tenho por isto.”
No que toca a determinação e amor pelo bairro Leonor não é a única. Filipe Coelho diz que “é inexplicável um amor como este. E vejo-o pelo meu filho. Nasceu em altura de marchas, cresceu neste meio, e vibra com todo este brilho”. Já Andreia Pacheco, criada nos Olivais mas uma recente moradora na Graça, partilha todo este amor por um bairro que a acolheu desde 2008. “Vim através de uma amiga. Ela saiu e eu continuei. Por muito que diga que não tenho vontade ou que me dá um cansaço horrível, quando chega à altura, tudo isso desaparece”. Teresa também sabe que o que a liga à marcha é o amor em bruto: “Ao fim de 27 anos, ainda estou aqui como no primeiro dia. Só tenho muito mais experiência. Amor é coisa que não me falta por tudo isto”.
Os nervos
As varinas, os peixeiros, as canastras e as sardinhas integram o tema da Marcha da Graça este ano. Numa palete recheada de tons que fazem lembrar o mar e a venda de peixe em toda a Lisboa, a Graça enche o coração de amor e o peito de orgulho para representar um tema nunca antes visto no bairro. “Nunca levei nenhum tema deste género na Graça, espero que possa ser uma boa estreia”, diz Leonor Antunes. “As coreografias e as músicas são muito ritmadas, é bom para os novatos começarem logo a dar à anca”. Os mascotes já estão a postos para uma noite cheia de brilho e alegria, e em jeito de gingões dão vida ao seu fato em ponto pequeno. Rodeados pelos mais velhos, sorriem e as costureiras dizem: “São o futuro da Graça!”
Todos os marchantes afirmam o convívio e a amizade que os une como as melhores coisas que retiram destas experiências. Vasco não podia estar mais de acordo com os seus discípulos. “No dia 12 de Junho, após desfilarmos na Avenida (da Liberdade), voltamos para a coletividade e convivemos, dançamos, comemos, bebemos até saírem os resultados…normalmente é sempre até às oito da manhã! Estamos, de facto, sempre estoirados e a desejar uma cama, mas a maioria aguenta-se até o sol raiar. E depois dos resultados, vamos todos tomar o pequeno-almoço à Graça (risos)”.
A uma semana de desfilar no MEO Arena, a Marcha da Graça afina os detalhes finais: dos fatos, dos arcos, do canto e da coreografia. O stress começa a aumentar e o clima de tensão entre os marchantes é maior. A pressão, o amor e a dedicação começam a dar sinais de vida. “Para quem não conhece e não está habituado, isto é uma loucura! Não há nada melhor do que ver este amor todo aqui explícito…É bastante reconfortante” , diz Vasco Cruz. Em jeito de brincadeira, frisa que “o mais difícil já está feito!” – e diz com um ar confiante: “só temos de esperar pelos resultados no dia 12”.
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular “Técnicas Redactoriais”, no ano letivo 2014-2015, na Universidade Autónoma de Lisboa.