As alterações climáticas são uma realidade com forte impacto nos ecossistemas, mesmo que alguns líderes mundiais insistam em ignorar o problema. Em entrevista, o presidente da Zero-Associação Ambientalista alerta que “o planeta e as próximas gerações estão ameaçados. Já não se pode esperar”.
Professor e investigador da Universidade Nova de Lisboa (UNL), Francisco Ferreira é um dos fundadores da Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, na qual é presidente. Engenheiro do ambiente, trabalha para assegurar a sustentabilidade do planeta e garantir melhor qualidade de vida à sociedade. Foi autor e apresentador da rubrica diária “Minuto Verde”, na RTP.
Nesta entrevista, que teve lugar alguns dias depois de completar 52 anos, Francisco Ferreira manifesta a mesma simpatia e sabedoria que os portugueses conhecem, enquanto explica o mais recente documento da Organização das Nações Unidas (ONU), o Relatório Especial do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) e seu impacto mundial, assim como as responsabilidades civis e políticas para com o ambiente e as missões da Zero.
Partindo das principais conclusões do relatório da ONU, o IPCC, recentemente divulgado na Coreia do Sul, quais são os principais erros que o Homem cometeu para chegarmos a este estado de degradação do planeta?
O planeta tem uma determinada capacidade de gerar recursos renováveis. No entanto, sobretudo após a Revolução Industrial, descobrimos que era muito mais fácil recorrermos a energia que estava armazenada, na forma de carvão, gás natural e do petróleo (os combustíveis fósseis) para garantir muitas das nossas necessidades. Por outro lado, também tem havido um aumento muito significativo da população e o uso da energia aumentou, assim como o consumo destes recursos, sem ter em conta a capacidade de regeneração dos próprios.
Embora esta utilização seja diferenciada entre os países, o que acontece é que acabamos por deteriorar não só o clima, mas também outros pontos como a perda da biodiversidade. Pescamos muito uma determinada espécie que levamos à sua extinção ou quase extinção. Degradamos o ecossistema que era fundamental para determinadas estirpes. Em relação ao clima, emitimos demasiados gases que estão a alterar a temperatura do planeta e, por conseguinte, provocamos mudanças atmosféricas enormes. Com tudo isso, acabamos por originar este problema. Geramos grandes desafios que, agora, precisamos de ultrapassar.
De que forma é que o relatório especial do IPCC vai influenciar a tomada de decisões de política climática internacional, ao nível da União Europeia e dos países, ao longo dos próximos anos?
Este relatório é muito importante. Pela primeira vez, temos o melhor da comunidade científica na escala mundial para nos dizer quais são os efeitos de um aquecimento de 1,5ºC a 2ºC em relação à era pré-industrial. Esta questão tem sido muito relevante porque numa primeira fase percebemos que o ritmo em que estamos a aumentar a temperatura não é de um ou dois graus. Aliás, já atingimos 1ºC de aquecimento da nossa atmosfera. Estamos a caminho de dois ou três graus ao longo das próximas décadas e isto traduzir-se-á em alterações dramáticas.
No entanto, a nível político e mundial, em 2015, assinou-se o “Acordo de Paris”, no qual estabelecemos que o limite seria de 2ºC de aumento, pois, se for superior, as consequências seriam terríveis. Entretanto, surgiram mais evidências científicas que, afinal, os 2ºC já seriam um custo muito elevado. Com impacto nas zonas costeiras, na subida do nível do mar, na saúde, na biodiversidade, nos eventos meteorológicos extremos com secas e cheias. Tentou-se perceber até que ponto esta diferença de temperatura seria relevante e chegou a conclusão que é. E mais ainda, tentou-se perceber se era possível garantir ainda não irmos além de 1,5ºC e como é que isso seria ou não exequível.
Este relatório responde a todas estas questões e diz-nos que é possível, que ainda estamos a tempo de transformações, que é uma transição enorme à escala mundial, se a quisermos fazer. Passa por apostas muito grande nas energias renováveis, na redução do consumo, preservação das florestas e ecossistemas. Mudanças que valem a pena porque os custos de o agirmos agora são muitos mais reduzidos do que aqueles que teremos de enfrentar se não o fizermos.
Em Portugal, temos os exemplos dos grandes incêndios dos últimos anos.
Os incêndios não são causados pelas alterações climáticas diretamente. O facto é que tivemos uma seca extrema, lenta e prolongada. Isso é, sem dúvida, um sintoma das alterações climáticas. Além disso, tivemos fenómenos meteorológicos como semanas com ondas de calor muito elevado. Foi o que contribuiu para que os incêndios tivessem uma escala muito maior. O mesmo aconteceu na Califórnia e noutros países. As alterações climáticas ampliam os fenómenos dramáticos como os fogos florestais. Portugal foi, de forma infeliz, um exemplo a pensar.
Como é que os governos podem implementar mudanças de política ambiental, nomeadamente em Portugal, quando a economia do país não é tão favorável? Não poderá existir alguma tendência para privilegiar os interesses económicos em vez da proteção do meio ambiente?
A questão é que, a médio e longo prazo, as modificações em prol do ambiente podem, precisamente, favorecer países que têm estas fragilidades. Portugal não tem carvão, petróleo e nem gás natural e, portanto, ao apostar nas energias renováveis evita importar estes combustíveis. Assim, traduzindo num claro benefício a médio e longo prazo.
O Governo português está a elaborar um roteiro para a neutralidade carbónica, em 2050, e será tornado público nos próximos meses. Esse é um dos caminhos que todos devemos discutir. É uma via de disrupção que passa, se calhar, em não termos automóveis abastecidos a gasóleo e a gasolina. Temos que conseguir proteger as nossas florestas e ampliá-las. Há aqui muito envolvimento de decisões políticas. Mas inclui, acima de tudo, um comprometimento da sociedade e uma compreensão civil sobre qual este caminho a percorrer e se estamos ou não disponíveis para tal.
Considera que os portugueses estão conscientes para esta fragilidade ambiental?
Acredito que os portugueses estão, sim, sensibilizados. O problema é que muitas das vezes não estão é disponíveis, tanto quanto seria desejável, para incorporar as ações necessárias. Portanto, aí é preciso haver uma maior sensibilização.
É necessário mudar comportamentos, mas é importante, também, dar sinais económicos de que determinadas atitudes, como opções de consumo, são mais canalizadoras do ambiente e do clima. Estas decisões devem ser, claramente, consciencializadas pelos consumidores que assim talvez sintam desincentivados a adotar más práticas.
Reduzir o plástico
Às vezes, para conseguir uma mudança de hábitos na sociedade é preciso implementar medidas restritivas, como foi o caso da proibição de fumar em espaços públicos. Considera viável proibir certas práticas, como por exemplo o uso do plástico? Aliás, existem algumas medidas do Governo, neste sentido.
O plástico é um bom exemplo. Neste material, temos a mistura de dois tipos de ações. Por um lado, a que se traduz nas decisões políticas. Ou seja, proibiu-se a utilização do plástico em determinados organismos públicos. Mas, por sua vez, as pessoas sensibilizaram porque sabem que o plástico tem um impacto muito grande no ambiente. Por isso, estiveram mais disponíveis para implementar a mudança. O plástico mostra-nos como é possível juntar uma ação política com uma ação de sensibilização e de consciencialização das pessoas e quão positivo é o resultado.
Como forma de incentivo, não seria positivo criar um sistema para compensar o cidadão que cumpre as regras de boas práticas fazendo a seleção e entrega adequada do seu resíduo reciclável? Por exemplo, criando um ponto de recolha em que a pessoa entrega o seu reciclável e, como incentivo, recebe um bónus ou créditos que dão descontos, na fatura da água ou eletricidade?
É fundamental traduzir os comportamentos do ponto de vista económico. Não tenhamos dúvida. Esta medida irá ser posta em prática. Foi aprovado, recentemente, na Assembleia da República (AR) que as garrafas de plásticos poderão ser retomadas aos supermercados e outros locais. As pessoas receberão uma recompensa monetária por aquilo que entregarem.
Seria muito importante ter que pagar pelo lixo que se produz. Por exemplo, eu e meu vizinho consumimos a mesma quantidade de água e pagamos o mesmo. Quem recicla ou produz menos lixo deveria de ter um custo menor nestas faturas em relação àquele que não recicla.
De que forma a sociedade civil pode pressionar o Governo para cumprir com o seu papel de protetor da natureza?
A sociedade pode fazer inúmeras coisas, como manifestar-se. Em Portugal, houve manifestações contra a exploração de petróleo e deu bons resultados. A 29 de outubro, foi anunciado que a exploração de petróleo não se irá concretizar. Há várias formas de manifestarmos as nossas preocupações: através do voto, da comunicação social e pelos alertas. Para isto é que servem as associações do ambiente. Estamos cá para fazer este trabalho em conjunto com a sociedade.
O cidadão tem que ser mais ativo no que refere a proteção ambiental…
Sem dúvida nenhuma. Em Portugal, a sociedade é, infelizmente, muito passiva. Há países que os cidadãos são mais ativos, como é o caso dos países nórdicos. Acredito que é possível irmos mais longe e as pessoas também já perceberam que é necessário este trabalho se quisermos ter ganhos futuramente.
Um perigo chamado metano
Uma das razões para as mudanças climáticas apontadas tem sido a massiva produção de carne bovina e lacticínios. Como é que esta indústria tem contribuído para desgastar os recursos naturais do planeta?
O problema da carne e do peixe é que, ao comermos os mesmos, não estamos a alimentar do nível primário da cadeia alimentar. Assim, temos um desperdício muito significativo dos recursos porque, quando consumimos estes alimentos, muita água e energia já se desperdiçaram nas suas passagens para o segundo nível da cadeia alimentar. Por outro lado, o gado bovino ou o gado associado à fermentação entérica, os vários animais que servem de alimentação proporcionam a produção do metano.
O metano é um gás com efeito estufa 28 vezes mais poderoso que o dióxido de carbono, pelo que acaba por ser um peso muito grande nas consequências atmosféricas. A alimentação baseada na carne e lacticínios contribui para o aquecimento global. Devemos apostar mais numa dieta baseada nos vegetais para fazemos um uso mais eficiente dos recursos.
É irónico que sejam as economias mais desenvolvidas que mais têm contribuído para estas alterações. Que responsabilidades têm estes países?
Há países onde o consumo por pessoa tem sido muito elevado. Como por exemplo, nos Estados Unidos da América, onde o nível per capita das emissões é muito elevado. No entanto, atualmente, o país com maiores emissões é a China por ter uma população maior.
Para analisar o clima, é preciso olhar para várias perspetivas. Uma é a chamada responsabilidade histórica, pelo que, por esta via, os EUA, apesar de não ser no momento o país campeão das emissões, ao ser calculado pelos últimos cem anos, torna-se num dos principais responsáveis pelo aquecimento global. O gás do efeito estufa reside na atmosfera e tudo aquilo que foi acumulado ao decorrer destes anos faz dos EUA o principal emissor.
Por sua vez, a China é a campeã emissora de gáses com efeito estufa, mas por pessoa está muito abaixo dos EUA. A responsabilidade da China é mais recente porque as suas emissões começaram a crescer nos últimos anos. É fundamental que os países desenvolvidos e com maiores emissões invertam esta tendência tão rápido quanto possível.
É preciso apostarem mais nas energias renováveis, aumento da resistência energética, mudar hábitos alimentares e proteger as florestas. Ao mesmo tempo, os países que estão em desenvolvimento devem não devem seguir o caminho errado que os outros seguiram porque se querem mesmo reduzir os impactos deste problema é preciso introduzir as mudanças desde já.
A construção do novo aeroporto mo Montijo é sustentável ambientalmente?
Não temos uma opinião sobre qual deve ser o rumo do novo aeroporto. O que a Zero quer é que não se discuta apenas a sua construção no Montijo ou Alcochete, onde for. Queremos debater qual será o futuro das infraestruturas aeroportuárias, na região de Lisboa. Vamos continuar com o da Portela? Até quando? A construção de um novo aeroporto no Montijo é viável até quando? É viável a construção do aeroporto em Alcochete, que já tem aprovação dada se não há, se calhar, dinheiro para o fazer?
O que queremos é que todos estes aspetos sejam objetos de uma avaliação ambiental estratégica. O importante é a discussão de um projeto que é fundamental a escala nacional, mas que tem um impacto muito significativo, a começar pelo ruído, pela desconstrução da natureza. É por isso que estamos contra a avaliação de impacto ambiental apenas do novo, eventual, aeroporto do Montijo e queremos uma análise mais ampla.
E esta discursão tem acontecido por parte das entidades responsáveis?
Não e o Governo diz que, legalmente, não é uma obrigação. Achamos que é e vamos ver o que os tribunais decidem acerca deste caso.
Acreditar no futuro
Qual é a missão da Zero e quais são os seus objetivos?
A Zero é uma associação não governamental do ambiente. Tem como objetivo principal promover um desenvolvimento sustentável, assegurar que conseguimos dar à sociedade um maior equilíbrio entre os valores ambientais e a garantia de melhores condições económicas, sociais e governamentais, ou seja, na forma como as pessoas participam na confirmação da sociedade.
Temos várias áreas de trabalhos onde procuramos, publicamente, depois de uma discussão interna sobre os diversos temas, sensibilizar os políticos. Tanto os locais, nacionais e internacionais para as questões no setor da energia, do clima, do consumo, da água dos oceanos, resíduos, construção da natureza, entre outros pontos.
Acima de tudo, queremos proporcionar à sociedade um futuro melhor, onde as pessoas tenham mais qualidade de vida e se sintam felizes.
Como se realiza a interação da Zero com a sociedade?
Interagimos por diferentes meios. É através da comunicação social, televisão, rádio e vários sites que tornámos pública as nossas exposições, mas também recebemos muitas mensagens de pessoas com dúvidas pelo Facebook e Twitter, às quais procuramos responder. Nem sempre é fácil e, por vezes, não conseguimos, mas procuramos dar estas respostas da melhor forma.
O que é que diferencia as missões da Zero das outras organizações ambientalistas como a Quercus?
Diria que uma das principais diferenças é sermos mais focados nos problemas ambientais. Olhamos para uma componente social de governança. Procuramos ir além do ambiente numa perspetiva de desenvolvimento sustentável. Talvez seja esta a diferença em termos das nossas exposições e atuações.
Momento de mudança
O que mais o preocupa em Portugal?
O que mais me preocupa é a demora em agir e não sermos sérios – quanto devíamos ser – quanto ao estado da situação do nosso país, principalmente, na avaliação da situação ambiental. Às vezes, procuramos mascarar o problema ambiental e não agimos de forma estrutural. Precisamos adotar medidas que não sejam apenas imediatas e mediáticas e sim verdadeiramente consistentes e de longo prazo. O que me faz mais impressão e mais me preocupa. Temos que incrementar mudanças que sobrevivam aos anos e que façam, realmente, a diferença.
Qual é o apelo que deixaria para a sociedade?
Precisamos de atitudes rápidas a favor do ambiente. Apelo à urgente colaboração mútua, dos governos e cidadãos. Temos que agir. Está na hora de fazer mudanças, de as perceber e praticar, já. O meu apelo já vem de há muito tempo, mas cada vez se torna mais premente. É importante compreendermos que o planeta e as próximas gerações estão, verdadeiramente, ameaçados. Não podemos esperar mais tempo e cada gesto, por mais pequeno que seja, conta. Todos temos que dar esse contributo e adotarmos práticas mais sustentáveis.