Uma das minhas últimas leituras foi ‘Teoria da Viagem’ de Michel Onfray. Trata-se de um autor de que gosto e que tento seguir. Este pequeno livro entrevê a viagem como uma bússola que vive do limbo onde sempre se digladiaram o sedentarismo e o nomadismo. Uma tensão que explode nos atritos do território e que coloca em evidência o mundo em fluxo que diariamente partilhamos. A obra foca-se na viagem enquanto mobilidade voluntária (turismo incluído) e não enquanto mobilidade da sobrevivência, embora uma e outra coloquem hoje em movimento no planeta milhões e milhões de pessoas.
Onfray distingue na sua teoria um antes “em que se sonha com um destino” daquilo que, logo a seguir, designa por “espaço intermédio” e que coincide com a logística existencial da partida, mas antes ainda de se ter atingido a meta. É o momento dos aeroportos, da consciência aberta aos possíveis, da errância interior.
Nesta fase, o autor do Journal hédoniste atribui ao viajante “uma espécie de abandono característico das salas de espera dos consultórios ou, presumivelmente, dos laboratórios de análises clínicas. Afastado da rigidez social e da conveniência imposta, das regras colectivas e dos hábitos sociais, o viajante frequenta um mundo suspeito de pessoas entregues à confidência, àquilo que Heidegger denomina falatório: uma espécie de decadência da palavra, talvez uma prática compensatória da angústia gerada pelo abandono do domicílio e pela chegada a um mundo sem pontos de referência”.
O livro capta depois o momento da viagem e realça dois aspectos interessantes: a invenção da inocência, ou a necessidade de o olhar se colocar em tábula rasa (longe dos preconceitos e do pré-conhecimento), e a redescoberta da subjectividade, na medida em que “o ser do mundo provém do ser que o observa”. Segue-se o tempo do regresso em que o enraizamento valida o nomadismo: “voltar é decidir não permanecer, confirmando e validando o que parecia constituir um dado adquirido e definitivo, ou seja, o domicílio”.
A viagem convida a que se perceba o mundo como uma geologia jamais adquirida. Daí que o ‘depois da viagem’ se confunda com a fase das narrações (que se cumpre segundo “o princípio de uma melodia, uma reposição, um tema insistente, uma variação, uma fuga, um contraponto”). Ao fim e ao cabo, narrar é percorrer um feixe ilimitado de trajectos, porque a palavra possibilita sempre colocar em perspectiva “instâncias que, a priori, não possuem nenhuma relação entre elas”. Razão por que Almeida Faria fechou o seu ‘Murmúrio do Mundo’ (2012), livro sobre uma viagem à Índia, com estas palavras: “Trouxe comigo um bloco confusamente escrevinhado, uma curiosidade acrescentada, uma crescente descrença na elegância da descrença. E tornei-me mais atento à infindável memória do mundo…”
O tempo existencial e tecnológico de hoje corresponde, em muitos aspectos, à situação do “espaço intermédio” que, segundo Onfray, precede a viagem. Estamos cada vez mais apeados do território, na medida em que a maior parte da informação e das referências que nos abismam provêm da rede e dos mais variados dispositivos digitais. Neste estado, que é o de uma geografia cindida pela fúria do imediato (e do instantâneo), a disposição e o ânimo que nos lançam ao mundo assemelham-se à sépia das gares e dos aeroportos polvilhada pela ansiedade, pela errância interior e pelo stress sem objecto. A recente campanha eleitoral ilustrou este facto na perfeição: uma ou outra contingência aliada ao denominador comum do falatório dos media ditou um mês de debate esvaziado, deserto e sem qualquer destino ou meta que se pudesse destrinçar.
A “infindável memória do mundo” não é algo que hoje se transmita, mas sim uma matéria esvaída e sem as alegorias mitológicas que a conseguissem agregar. O que poderá até ser uma virtude, fazendo eco do penúltimo parágrafo da ‘Teoria da Viagem’ de Onfray: “A apreensão do Diverso contradiz o desafio do Mesmo e, em compensação, inicia-se na vondade de multiplicar o Outro”.