A bipolaridade não é uma fraqueza humana: é uma doença incompreendida que atinge cerca de 1% a 2% da população em todos os países do mundo e só poderá ser alcançada quando o estigma social for erradicado.
Segundo o relatório Health at Glance 2018, elaborado pela Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico (OCDE), quase um quinto da população portuguesa (18,4%) sofre de doença mental. Estima-se que, em Portugal, existam cerca de 200 mil pessoas portadoras da doença bipolar e cerca de 20% dos doentes que apresentam sintomas de depressão unipolar sofrem do mesmo problema.
Helena Pinto, 55 anos, é um dos muitos casos diagnosticados com doença bipolar. Foi internada pela primeira vez em 1981, com apenas 16 anos, quando começou a sentir dormência pelo corpo inteiro, mesmo na língua, impedindo-a de falar e chegou a perder a noção da realidade. Durante anos, foram muitos os internamentos sem descobrir a causa dos sintomas. Como tantos outros casos em Portugal, este quadro clínico corresponde a um grupo de doenças mentais que tem como elemento comum transtornos mentais.
No caso de Helena Pinto, ela e o irmão herdaram a doença bipolar pelo historial da família do pai. “Comecei na adolescência a ter perda de memória, tinha dificuldade em raciocinar, alterações emocionais e podia chegar a não reconhecer nada nem ninguém quando tinha uma crise. Fui muitas vezes parar ao hospital. Passados anos, suspeitaram que tinha a doença bipolar. Com 21 anos, encaminharam-me para a psiquiatria e confirmaram-me que tinha doença”, conta.
A hereditariedade da doença não tem, no entanto, de ser uma condição para que este distúrbio se manifeste. Como afirma Amílcar Santos, médico psiquiatra, “é até muito frequente uma pessoa com doença bipolar não ter nenhuma história familiar ditas perturbações mentais, mesmo sendo uma doença transmissível geneticamente”.
Mudanças de humor
O transtorno bipolar pode manifestar-se segundo duas tipologias, ambas com mudanças claras no humor. Essas alterações no humor têm importante repercussão nas sensações, nas emoções, nas ideias e nos comportamentos da pessoa, com uma perda importante da saúde e da autonomia da personalidade, interferindo na vida, no trabalho e nas relações que o doente tem com os outros.
Como explica Amílcar Santos, “geralmente é no final da adolescência que os sintomas da doença bipolar aparecem. Esta doença tem o tipo de mania, que dura cerca de uma semana em que o doente tem muita energia, não tem necessidade de dormir, os pensamentos estão sempre muito acelerados, pode ainda sentir-se muito bem-disposto e eufórico”. O médico acrescenta que “existe outro tipo que é o tipo de depressão, em que há diminuição do funcionamento cerebral. O doente fica triste, demora a raciocinar, pode ter alterações de concentração ou de memória e ainda pode ter pensamentos suicidas”.
Diagnóstico da doença
Hoje em dia, não existe nenhum exame que possa identificar a doença bipolar. “O diagnóstico é feito com base na observação do doente, o psiquiatra tem de prestar atenção às alterações de comportamento e recolher informação quando conversa com amigos ou família do mesmo”, revela Amílcar Santos.
Depois do diagnóstico da doença bipolar, Helena Pinto voltou a ter outras recaídas. “Fui a uma consulta de psiquiatria e o psiquiatra disse-me que tinha todos os sintomas de doença bipolar. Eu não aceitei a doença e recusei-me a ir ao médico durante uns tempos. Senti que não era normal, não consegui aceitar que tinha uma doença julgada de ‘malucos’ e foi mesmo muito difícil. Entretanto, voltei a ter muitas crises de depressão e foi a partir daí que retomei os estabilizadores de humor para arranjar um equilíbrio e viver com mais qualidade”, partilha.
Importância do tratamento
O tratamento é essencialmente farmacológico e pretende função é a de funcionar como estabilizadores de humor para controlar as recaídas, tanto em crises de mania, como de depressão. “Doentes que tenham uma fase de grande depressão durante cerca de duas semanas e a seguir passam para uma fase de muita agitação não vão melhorar espontaneamente porque é raro ter só uma crise”, esclarece Amílcar Santos.
Os medicamentos são ajustados dependendo das crises que o doente sofre. Durante o tratamento das mais agudas, são utilizados fármacos para aliviar a curto prazo, como antipsicóticos que ajudam a combater sintomas psicóticos, mas também melhoram os estados de euforia. O especialista acrescenta que “na depressão, deve-se receitar apenas antidepressivos por poucos meses e depois retirar, uma vez que a utilização prolongada de antidepressivos pode ser prejudicial. Para um doente bipolar, é como estar a deitar gasolina para o fogo porque o doente pode passar para uma fase maníaca”.
Existem outros tratamentos adjuvantes que podem complementar com a medicação do doente bipolar. “O paciente pode fazer psicoeducação. São aulas de grupo com palestras, juntamente com outros doentes portadores de bipolaridade para conhecerem e aceitarem melhor a doença”. Amílcar Santos realça ainda que “é muito importante que os doentes com doença bipolar convivam com outras pessoas que sofram do mesmo problema e tenham o testemunho uns dos outros”.
Sem uma cura para a doença bipolar, existem algumas regras de ouro que são fundamentais para a saúde do doente. “Conhecer e aceitar a doença é a regra principal. Os estabilizadores de humor são outra parte fundamental. Também não se deve beber álcool em excesso e não consumir drogas. Levar uma vida sem muito stresse e complementar com exercício físico, alimentação regrada são cuidados essenciais”, indica o médico psiquiatra.
Enfrentar barreiras
Mesmo com todas as dificuldades em aceitar a doença bipolar e com todas as oscilações intensas sem causa conhecida, Helena Pinto considera-se uma mulher forte pelas barreiras que tem enfrentado. “Hoje em dia, aceito totalmente a minha doença. Li muito sobre o assunto e também conheço pessoas que têm a mesma doença que eu. Infelizmente, impediu-me de conseguir continuar a trabalhar, mas há muitos exemplos de pessoas que têm a doença bipolar e são muito bem-sucedidos profissionalmente”. Como afirma Daniel Sampaio, médico psiquiatra, “os doentes com doença bipolar podem fazer uma vida normal, desde que façam a medicação regular e tenham consultas regulares de psiquiatria”.
São muitos os casos de pessoas com bipolaridade que recusam encarar a doença. Ficam revoltadas, passam dias fechadas em casa e não querem continuar a viver. Pela experiência de vida e diagnosticada aos 52 anos com outra doença crónica, Helena Pinto garante que o caminho é para a frente. “Fui diagnosticada com doença de Parkinson e, surpreendentemente, decidi que a chegada de outra doença foi o momento certo para começar a abraçar a vida com força. É caso para dizer que há males que vêm por bem”, confessa. Enfrentar as duas patologias em simultâneo tem sido um desafio muito exigente. “Para conseguir tratar a doença de Parkinson, neste momento, não estou a tomar o estabilizador de humor para a doença bipolar porque não é fácil tratar das duas doenças ao mesmo tempo”, refere.
Um estudo publicado na rede da Journal of the American Medical Association (JAMA) refere que a incidência da doença de Parkinson está aumentada nos pacientes com doença bipolar. Como explica João Parente, médico psiquiatra, “os estabilizadores de humor são o pilar do tratamento da doença bipolar, mas podem agravar a doença de Parkinson.” Há ainda a realçar que muitos tratamentos da doença de Parkinson podem induzir surtos maníacos graves em pacientes com a doença bipolar. “Como se tal não bastasse, a maioria dos agentes anti-maníacos para a doença bipolar pode agravar a doença de Parkinson. Estamos numa situação em que, metaforicamente, se taparmos a cabeça, destapamos os pés. É um dos desafios mais complicados que exige uma articulação estreita entre psiquiatras e neurologistas”, realça o médico especialista.
Em Portugal, a ADEB – Associação de Apoio aos Doentes Depressivos e Bipolares abrange todas as pessoas com depressão unipolar, perturbação bipolar ou outras comorbilidades, de maneira a apoiar no processo da educação, reabilitação e prevenção. Helena Pinto confessa: “Todos os dias são incertos. Um dia, posso sentir-me de uma maneira e no outro já é completamente diferente. Isso interfere com todas as pessoas que me rodeiam porque nem toda a gente compreende ou aceita o que é ter uma doença mental”. Daniel Sampaio, médico psiquiatra, refere, no entanto, que a doença bipolar ainda é um estigma para a sociedade, embora cada vez menos: “Antigamente, esta doença chamava-se psicose maníaco-depressiva. O termo era estigmatizante, os doentes eram tratados como ‘malucos’. Hoje em dia, já há mais aceitação.”