Professor catedrático jubilado, condecorado, com décadas de experiência e contacto com jovens e doentes mentais, único irmão de um já falecido Presidente da República. Daniel Sampaio, 77 anos, concedeu uma entrevista ao UALMedia no seu consultório em Lisboa.
Comecemos por uma questão que me intriga: já declarou algumas vezes em público que prefere ser nomeado escritor, em vez de psiquiatra. A que se deve a preferência pela designação de autor?
Tem a ver com a fase de vida em que estou. Durante muito tempo, quando estava no ativo, na faculdade e no hospital, não diria isso: diria que era um psiquiatra escritor, psiquiatra que escreve livros. Ultimamente, tenho-me dedicado muito à leitura e tenho procurado escrever melhor. E nesta fase da minha vida, sobretudo agora, que escrevi o livro Para Tão Curtos Amores Tão Longa Vida, que é um livro que me esforcei para escrever bem, fiquei a pensar que talvez pudesse, nos anos que me faltam, dedicar-me mais às letras, porque a carreira de psiquiatria está terminada, digamos assim.
Apresenta já uma extensa obra literária, que aborda temas sensíveis. Um dos seus livros, de 2021, o Covid 19 Relato de Um Sobrevivente, é o seu primeiro livro escrito na primeira pessoa. Será no processo de escrita que Daniel Sampaio pára um segundo para se poder focar na cura do trauma que viveu, enquanto esteve internado entre a vida e a morte com Covid 19, para poder partilhar essa experiência menos boa com as pessoas? Este livro é uma terapia?
Sem dúvida. Tive uma experiência que se pode considerar “de limite”, próxima da morte. Pensei muitas vezes que ia morrer. Mas felizmente as coisas correram bem.
Esse livro foi uma espécie de “diário” de um doente grave de Covid. É preciso sublinhar que em 2021 não havia vacinas, as vacinas vieram depois de eu estar doente, portanto não estava vacinado. Esse livro foi como que “para arrumar” essa parte da minha vida, um testemunho de sofrimento pessoal. Mas aquilo que procurava transmitir era sobretudo, passar às pessoas o desejo de lutarem para sobreviver quando se está numa situação grave. Tenho a noção de que se me tivesse abandonado a mim próprio, já não estaria aqui. Houve uma parte minha, que foi à luta, e quis dar o testemunho dessa luta na primeira pessoa.
Ainda sobre a Covid 19: é um facto que a propagação do vírus deixou uma marca na saúde mental das pessoas. Num artigo de 2021 no Expresso, um estudo revela que os jovens portugueses estão em “sofrimento psicológico”, cotado numa taxa que vai do moderado ao grave. Nota que as pessoas estão mais deprimidas?
A pandemia teve uma importância muito grande no agravamento de situações que já existiam antes. Muitas pessoas que estavam deprimidas e com ansiedade nessa altura agravaram o seu estado clínico. E também muitas pessoas estiveram pela primeira vez com depressão e ansiedade, que são as doenças mentais mais frequentes.
A socialização é uma coisa muitíssimo importante. As pessoas tiveram aulas e trabalharam em casa… E nesse período sentiram-se muito sós. Não tinham os seus amigos, os seus colegas, para poderem interagir. Hoje existem muitos jovens que não se desenvolveram psicologicamente na adolescência, porque essa parte da vida exige que haja uma interação entre pares, e essa ficou muito prejudicada durante dois anos.
“Os pais portugueses [são] demasiado protetores”
Falemos agora da saúde mental dos jovens portugueses. Quais são as principais inquietações e dificuldades que atravessam?
São as inquietações face ao futuro, principalmente. Temos muitos jovens que estudam, temos uma percentagem muito maior de pessoas que completam o ensino secundário, a licenciatura ou mesmo o mestrado. O que acontece é que muitas dessas pessoas não arranjam trabalho, ou arranjam, mas com um vencimento muito baixo.
Os nossos salários são muito baixos. Mesmo com um mestrado, não temos a garantia de que as pessoas venham a ter um trabalho minimamente digno ou bem renumerado. Outra inquietação tem a ver com a habitação. Existem muitas pessoas que já estão a trabalhar, mas que permanecem em casa dos pais, pois não conseguem arranjar casa.
Portugal é um país onde as pessoas saem muito tarde de casa dos pais, e isso não é uma coisa boa, faz aumentar a sua dependência. Depois aparecem as questões relacionadas com a sexualidade, com os namoros e com as amizades. O aparecimento da internet modificou por completo estas abordagens, os contactos são diferentes.
Considera que os pais têm um papel preponderante para que o jovem cresça e viva com uma mente sã?
Considero que os pais são muito importantes, mas acho os pais portugueses demasiado protetores [momento de reflexão]. Tenho estado em países da Europa do Norte, onde a autonomia dos jovens é conseguida mais cedo. Muitos jovens saem mais cedo de casa, enquanto que em Portugal as pessoas saem, em média, aos 30 anos. E os pais são muito protetores.
Os pais estão a contactar os professores universitários, comentando as notas que dão, as classificações dos trabalhos, sugerindo-lhes aulas diferentes e, muitas vezes, acompanham os filhos a uma conversa com o professor. A partir dos 18 anos, as pessoas devem tratar dos seus assuntos.
O espaço da faculdade é autónomo, as pessoas têm de se resolver com os colegas e professores. Os pais devem ajudar, mas têm que estimular a autonomia dos filhos logo assim que comece a adolescência. Têm de perceber que os filhos têm de correr riscos, para poderem vingar. Se não correm riscos, vão adiando situações e depois não têm ferramentas para lhes dar resposta.
“O acesso ao tratamento ainda não está fácil, sobretudo no Serviço Nacional de Saúde”
No século passado, o conhecimento era limitado e restrito a muitos, daí ser mais frequente rotular alguém com comportamentos desviantes aos padrões expectáveis da sociedade. Como era feito o acompanhamento às pessoas que conseguiam ter acesso ao tratamento?
Devo começar por dizer que o acesso ao tratamento ainda não está fácil, sobretudo no Serviço Nacional de Saúde. Existem poucos psicólogos. Há psiquiatras, mas têm muitas consultas e são muito espaçadas. Precisamos de mais condições e recursos humanos para ninguém ter que recorrer ao privado. Fala-se mais de saúde mental, mas ainda há um longo caminho a percorrer.
Antes, as pessoas com problemas mentais eram consideradas “loucas”. A psiquiatria esteve separada dos hospitais convencionais durante muito tempo. Agora felizmente há o movimento ao contrário. As doenças mentais são doenças como outras quaisquer, precisam de tratamento.
O que se sabe é que há pessoas com doenças mentais graves, como a esquizofrenia e a doença bipolar, e com problemas da ordem psicológica, mas que são situações curáveis, como a depressão e a ansiedade. Ao trazer essas situações para os serviços de medicina geral dá-se um “aproximar” da psiquiatria, o que melhora a capacidade de resposta.
E o que acontecia por sua vez aos que não conseguiam o acompanhamento necessário?
O doente mental grave era marginalizado. Nas aldeias, era considerado o louco da aldeia e era gozado pelas pessoas. Durante muito tempo, as pessoas com doenças mais graves eram internadas contra a sua vontade. Nos anos 80, recebia telefonemas de famílias a dizer que precisavam que eu internasse “x” familiar no Júlio de Matos. Era assim mesmo que as pessoas pensavam. E os doentes ficavam internados para a vida toda.
Hoje, isso não acontece. Não se pode internar ninguém contra a sua própria vontade, a não ser em circunstâncias muito graves, que tenham a ver com a segurança pública ou com a agressividade para consigo mesmo. As pessoas agora procuram o tratamento e a família colabora.
Estamos aqui, na Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar. Justamente, é uma forma de ajudar a família a lidar com as suas dificuldades.