Tiroteios, tráfico de droga, roubo e agressões foram algumas das razões que levaram a Cova da Moura a ser notícia pelos piores motivos, emprestando má fama a esta zona da Grande Lisboa. Mas será que ainda é assim? Fomos ouvir os seus moradores e perceber se esta conotação negativa é realidade ou um preconceito.
Cova da Moura, 17:15h. Por ruas íngremes, alcatroadas e ligeiramente esburacadas, veem-se pessoas a descer e a subir, de um lado para o outro, e outras tantas sentadas no meio do chão, em convívio. A movimentação é constante. O cheiro a cachupa, prato tradicional de Cabo Verde, sente-se ao longe.
Os moradores parecem conhecer-se todos uns aos outros, quase como se fossem família. O cumprimento é certo sempre que se passa por alguém. As casas estão juntas como um puzzle, sem distanciamento. Observam-se obras de melhoramento na via pública. Paredes grafitadas. Miúdos a jogar à bola e mulheres a estender roupa.
Ainda que a estigmatização e a má fama perdurem até hoje, alguns dos que aqui habitam garantem que o ruído e exagero que criam à sua volta é apenas isso. “Sei de muitos marginais e assassinos que vivem em cidades, só que ninguém dá conta porque já foi criado o estereótipo de que num bairro é que há porcaria. As coisas más podem passar-se em qualquer sítio”, diz Edgar, de 48 anos, morador há mais de quatro décadas.
Situada no concelho da Amadora, esta área foi, em tempos, uma exploração agrícola, nascida da ocupação e construção, sem licença, por parte de pessoas vindas das ex-colónias e do interior de Portugal. Uma terra de cultivo (trigo), em que havia numa extremidade uma vacaria, local denominado de Quinta de Outeiro, abandonada no final da década de 1950.
A possibilidade de demolição é algo que continua presente, embora os moradores não se mostrem muito preocupados. “Estamos à espera do dia em que eles, os que acham que mandam bué, nos venham despejar”, ironiza Edgar. “Estão à vontade, desde que nos paguem o custo da casa.”
Sara, de 28 anos, acrescenta que só querem “viver em paz, sem confusões” mas, acima de tudo, serem respeitados e tratados de forma igual aos outros. “Como podes ver, estás aqui a entrevistar-me e não te está a acontecer nada”, avança. “A Cova da Moura já não é o que era!”
O preconceito de décadas
O carácter multicultural do bairro — apesar da expressão cultural cabo-verdiana se apresentar como dominante — será, segundo Sara, uma das razões que ajuda a perpetuar o estereótipo. “Se fosse habitado maioritariamente por caucasianos não havia tanto alarido”, declara. Já Edgar acredita que é muito mais do que uma questão racial. “Já passámos aquela fase do ser só preto. Agora conta a forma como tu és, se um preto que vive de acordo com as normas, do que é uma suposta pessoa civilizada, ou não. Importa a maneira como te vestes, falas, andas, isto é o que está a diferenciar os africanos hoje, e a fazer com que haja mais ou menos julgamento público.”
Na hora de procurar trabalho, a proveniência também continua a ser uma questão. “Antigamente muitas pessoas escondiam, pois quando davas a morada eras praticamente excluído, mas hoje em dia isso já não é tão tido em conta, porque necessitam de mão de obra. As pessoas tratam-te consoante a sua necessidade.” Edgar dá conta da sua própria experiência. “Houve muita gente que me fechou as portas, mas quando se veem desesperados, o gajo da Cova da Moura, já serve. Porque és do bairro e as pessoas de lá são pobres, então eles assumem que aceitamos qualquer coisa e exploram-nos ao máximo. Mas é a vida e um ‘gajo’ tem que se sacrificar para viver.”
Ele que afirma ter vivido na Almirante Reis, “no mais luxuoso dos prédios”, mas que preferiu regressar à Cova da Moura, de encontro à união típica do bairro. “Eu vivo de uma camaradagem completamente diferente das cidades”, declara. “Nos prédios, o ser humano vive dentro da casota sozinho, bué da people a morrer à toa. Se falecer alguém na cidade, ninguém dá conta; aqui, se não apareceres hoje, eu vou à tua procura.”
Diferentes visões
No bairro cruzam-se várias opiniões. Manuela, dona de um restaurante, mostra-se em discordância com muitos dos moradores. “O que se ouve dizer é a realidade. Existe muita confusão e muita gente problemática.”
A comerciante queixa-se ainda da falta de policiamento. “Nem sequer há polícias suficientes, não se mostram interessados em cá vir, porque têm medo do que lhes possa acontecer.” Questionada sobre se este local estigmatizado como um centro de criminalidade urbana prejudica o seu negócio, assume que sim, que “se fosse noutro sítio, iria lucrar muito mais”.
Manuela e Edgar apresentam também perspectivas diferentes relativamente ao papel da comunicação social e à influência que esta poderá ter na forma como a sociedade olha para este sítio. Manuela assegura que “a comunicação social faz o trabalho que lhe compete, que é informar a sociedade sobre as ocorrências diárias, e a verdade é que a Cova da Moura tem muitos problemas sociais que têm de ser resolvidos”.
Em clara divergência, Edgar afirma que “uma parte daquilo que [eles] transmitem é verdade, mas a maioria é mentira. Precisam vender mais jornais e notícias do que nós precisamos roubar, como eles afirmam que fazemos. O que querem é aquela publicidade sensacionalista.” Mantendo a calma, mas sempre com um tom agressivo, continua: “esses jornalistas não conseguem criar uma ideologia próspera para a comunidade. Só inventam, instigam o ódio a um território que não é conhecido do povo e ainda dão a entender que os polícias sofrem nas nossas mãos, quando estes é que cá vêm fomentar situações de guerra”. Guerrilhas e opiniões à parte, acredita, ainda assim, que o caminho poderia ter sido diferente. “Se nos tivessem ajudado quando cá chegámos não tinham obrigado os que hoje são intitulados de bandidos a ir por outros caminhos. Nunca foi uma questão de luxo, mas sim de sobrevivência”, conclui.