Chelas, bairro na freguesia de Marvila, quase deixou de existir, mas apagar a zona do mapa seria apagar uma parte da história de Lisboa. A ideia não se concretizou graças à ajuda da associação Chelas é o Sítio.
Chelas, 24 de novembro, 11:30h. A chuva torrencial e os ventos fortes na freguesia deixam até os mais protegidos encharcados. Curiosamente, apesar do estado do tempo, a rua está viva. Pessoas amontoadas em conversas ligeiras nas esplanadas dos cafés confundem o dia chuvoso e triste com uma manhã de primavera. O bairro está mais vivo que nunca.
O estigma e preconceito criados à volta do bairro incomoda qualquer um que conheça Chelas. “Existe um estigma e até medo, diria, acerca de Chelas. No entanto, nunca senti qualquer receio”, afirma Madalena Gouveia, 18 anos, que fez no ano passado um trabalho foto documental sobre Chelas. “As pessoas sabem que tu não és de lá e podem ficar um pouco desconfiadas por estares ali… mas são inofensivas, apenas te dão um olhar. Chelas não é de todo o preconceito que existe”, afirma.
A associação Chelas é o Sítio, que atua em prol do bairro, tem ajudado de diversas formas. Entre ações sociais, eventos desportivos e apostas em artistas locais, a associação foi criada no ano passado. Tudo começou porque “queria abrir um cabeleireiro social e foi-me dito, pela Associação dos Moradores do Bairro das Amendoeiras, que só me ajudavam se tirasse o nome de Chelas. Depois pedi ajuda ao Sam [the Kid], porque é ele que tem a voz e pronto… No início, era só eu e o Sam, mas depois fomo-nos juntando mais e acabou por ser um de cada bairro”, diz Zé Silva, 39 anos, a mente por trás da ideia inicial de fazer algo para ajudar Chelas. “Não tínhamos isso [transformar-nos numa associação] sequer em mente, mas partiu de uma ideia do [Fernando] Medina na altura.”
A luta dos moradores por uma Chelas melhor
Quem não conhece a área pode surpreender-se ao ver, entre prédios e edifícios, um campo de futebol de praia de areia verdadeira. Isto é só mais uma das provas de como Chelas pode surpreender. Como nada se faz sozinho, Zé Silva precisou de ajuda para fazer mais e melhor com a associação. “Cada um de nós tem o seu papel, nós somos cinco iniciais”: Zé Silva, dono da Chelas Cuts; Samuel Mira, mais conhecido como Sam the Kid, rapper nascido e criado na zona; Nuno Varela, da Kriativu; Adriano Finuras, da Torre Laranja Fc; e Ricardo Gomes, da liga Masterfoot. Foram estes cinco que, no ano passado, meteram mãos à obra para melhorar Chelas.
A associação tem crescido de uma maneira que nem quem a criou esperava. “Acho que é muito bom para uma associação que tem apenas um ano chegarmos a palcos como o Rock in Rio e o MEO Kalorama”, comenta Zé Silva. A associação esteve presente na última edição do Rock in Rio na curadoria do Palco YORN, onde apresentou alguns artistas do seu projeto ‘Prata da casa’ que pretende elevar os nomes da música local aos palcos nacionais.
Apagada do mapa, mas nunca da memória
As típicas zonas de Chelas, nomeadas originalmente de Zona L, Zona I, Zona J, Zona M, Zona N1 e Zona N2, foram renomeadas para Bairro das Salgadas, Bairro das Amendoeiras, Bairro do Condado, Bairro do Armador, Bairro da Flamenga e Bairro dos Lóios. Estas mudança não agradam a todos.
Estas alterações, apesar de significativas, não satisfizeram as vontades de mudar uma das zonas mais típicas de Lisboa. Hoje, sabe-se que existia um projeto para acabar com Chelas, ou pelo menos com o nome e a identidade da mesma, mas uma reunião entre Samuel Mira, um dos fundadores da associação, e Fernando Medina, na altura presidente da Câmara de Lisboa, encerrou essa ideia. “Não digo que seja salvar, acho que nunca iria morrer”, afirma Zé Silva que acredita que, mesmo que não fossem os esforços da associação, Chelas nunca iria morrer. “Obviamente que viemos dar outra força e pôr o nome para cima. As pessoas achavam que estava conectado a criminalidade. Se reparares bem, não é nada disso.”
O preconceito que anda de mãos dadas com o nome de Chelas cada vez se desvanece mais. A presença e a visibilidade que Chelas é o Sítio tem nas redes sociais mostra uma Chelas diferente, não a que estamos acostumados a ouvir entre bocas e murmúrios. Madalena Gouveia relata os comentários que ouvia quando veio fazer o seu trabalho a Chelas: “As pessoas diziam-me sempre ‘Chelas? Vê lá, não sejas assaltada ou esfaqueada quando lá estiveres’.”
Não é, nem de perto nem de longe, este o sentimento que paira no bairro. “Quem vive num bairro é uma grande família quem diz que está farto de bairrismo é porque não sente um bairro”, afirma Zé Silva que, antes e depois da entrevista, foi cumprimentando de forma carinhosa aqueles que pela sua barbearia passavam, quase de uma forma familiar.
Novas caras, mesmo bairro
Uma das missões da Chelas é o Sítio é fazer com que as pessoas nascidas e criadas em Chelas o digam com orgulho, que se identifiquem com a sua zona, e essa missão está num bom caminho. “Sem dúvida, sentem-se mais de Chelas”, afirma Zé Silva que vê diariamente o que a sua associação tem feito por Chelas. “Com muito orgulho, vejo essas cenas a saírem do papel.” Desde os mais novos aos mais velhos que o amor por Chelas tem crescido, não só das pessoas da zona, mas também das de fora. “No próximo verão, com certeza traremos muita gente”, diz Zé Silva. “Até tenciono continuar a desenvolver o meu projeto no futuro”, confessa Madalena Gouveia.
O que faz de Chelas um bairro vivo não é a sua história ou os seus edifícios são as pessoas. Mesmo com as mudanças no nome das zonas e o preconceito continuam a carregar o nome de Chelas com a cabeça levantada. A missão não será fácil, mas se o futuro de Chelas passa pelas mãos da Chelas é o Sítio será decerto um futuro melhor.