Carla Oliveira tem 33 anos e é natural de Lourosa, Vila Nova de Gaia. A atleta paralímpica padece de distrofia muscular das cinturas, mas a doença nunca a fez baixar os braços. O Boccia fez com que se autodescobrisse e deu-lhe a oportunidade de participar nos Jogos Paralímpicos de Tóquio, nos quais ficou em quarto lugar. Apesar de ter apenas seis anos de competição internacional, já soma medalhas de ouro, no Open Mundial Poznan, na Polónia em 2015, e no Campeonato da Europa de 2017. Recentemente, conquistou uma medalha de prata no Open do Canadá, em 2019, e duas medalhas de bronze, uma individual e outra de pares, no Campeonato da Europa de 2021.
Quem era a Carla antes de saber que tinha distrofia muscular das cinturas (DMC)?
Era uma miúda sonhadora, muito despreocupada e descomprometida com as coisas, muito brincalhona, muito solta. Era irresponsável também, por ser imatura. Fui muito inocente, uma criança no verdadeiro sentido da palavra!
Após descobrir a doença, quais foram as fases mais difíceis para si e para a sua família?
A doença foi diagnosticada quando tinha 10 anos, era miúda. Foi só na adolescência que passei pela descoberta do que a doença me estava a tirar. Existe uma fase distinta para os meus pais e uma fase distinta para mim. Para mim, foi muito mais difícil não quando soube do diagnóstico, porque não tinha consciência do que a doença implicava, mas sim ao longo do processo. Quando passei pelas situações de perdas físicas, perdas de capacidades, de coisas que conseguia fazer, como correr, saltar, caminhar e que deixei de fazer. Eu diria que foi na altura dos meus 12/13 anos. Para os meus pais, diria que terá sido quando houve o diagnóstico. O médico partilhou aquilo que é a doença, explicou as suas implicações e penso que foi aí o choque. Para mim não tanto, fui muito protegida nessa altura. Estava frustrada e reconhecia as minhas dificuldades, sofria bullying na escola, e esse também terá sido um processo doloroso para eles.
“Nunca deixei de fazer nada por estar numa cadeira. Quando eu entendo e aceito isto para mim é quando tudo se torna mais simples.”
Com todas as limitações que a doença provocou, chegou um momento em que a Carla foi obrigada a recorrer a uma cadeira de rodas para se deslocar. Como foi essa adaptação?
No início, via a cadeira como fim de linha, mas agora vejo-a como a minha liberdade. Tive de me consciencializar que tinha de ir para a cadeira mais ou menos aos 15 anos. À medida que fui perdendo capacidades, tive de recorrer à cadeira de rodas para me conseguir deslocar porque ia a um shopping, ia dar um passeio, ia caminhar e ficava muito cansada. Na escola, percebi que, se não tivesse a cadeira, não iria conseguir sequer trocar de sala de aula, porque já não conseguia caminhar. De ano para ano, as capacidades não eram as mesmas. Foi aí que tive mais consciência da realidade.
Licenciou-se em Educação Social no Instituto Jean Piaget e concluiu o Mestrado em Ciências da Educação, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP). Como foi para si a adaptação ao dia-a-dia de uma universidade?
Na altura, optei por ir para o Instituto Jean Piaget, em Gaia, uma universidade privada, porque conseguia mais facilmente que a minha mãe me levasse e fosse buscar. Como já tinha a cadeira e estava adaptada a ela, nunca deixei de ir aos momento da vida académica, seja às praxes, às festas, às aulas. Nunca deixei de fazer nada por estar numa cadeira. Quando eu entendo e aceito isto para mim é quando tudo se torna mais simples. Portanto, nessa altura da faculdade, já via a cadeira como as minhas pernas.
Orgulho em representar Portugal e em ser atleta paralímpica
Como se sente enquanto atleta paralímpica e como caracteriza os atletas paralímpicos?
Sinto-me como porta-voz dos meus colegas, mas também sinto uma responsabilidade muito grande em representar Portugal ao mais alto nível. É um grande orgulho representar a seleção e poder estar entre os melhores e ser uma das melhores. O ser atleta paralímpica é isso. As pessoas ainda veem os paralímpicos apenas como um passatempo, como uma ocupação, mas é muito mais que isso. Isto deixa de ser um hobby para ser um trabalho que exige um esforço e uma dedicação muito grandes. Acho que o desporto adaptado ainda tem muita conotação negativa, por estar associado a pessoas com deficiência e não nos verem com o devido valor.
Eu e os meus colegas, por vezes, vamos a escolas fazer demonstrações. Eu ensino e digo como devem fazer e quais as estratégias da modalidade. No fim, várias crianças vêm ter comigo e dizem: “Isto é mais difícil do que parece!” Passam a ter respeito por aquilo que fazemos por terem experimentado. Agora, aqueles que não têm contacto pensam que é só lançar bolas. Penso que, ainda assim, conseguimos ter um maior interesse e uma maior mediatização graças às redes sociais. São mecanismos perfeitos para divulgar as modalidades. Este ano, penso que tivemos mais visibilidade por causa delas.
“Com o Boccia, ganhei a oportunidade de participar nos jogos paralímpicos, algo com que nunca tinha sonhado!”
Foi no Estádio das Antas que se deparou com a modalidade, mas inicialmente não lhe suscitou interesse. Atualmente, o que é para si e o que aprendeu com o Boccia?
O Boccia começou na minha vida como um hobby e atualmente é uma prioridade. Há muita gente que vai para o Boccia porque está à espera de uma integração social, de conhecer pessoas, de abrir aqui um mundo. Eu não acho que o Boccia tenha sido um abrir portas em termos sociais, até porque sempre tive muita vida, mas o Boccia é realmente uma modalidade direcionada para pessoas com limitações muito grandes do ponto de vista físico. Muitas dessas pessoas nem conseguem verbalizar, têm muitas dificuldades, e para essas pessoas o Boccia é um excelente meio para ter motivos de sair de casa, para ter uma vida, para ter objetivos. Infelizmente, sempre olhei para o Boccia como: “Este é o meu objetivo mas, se não correr bem, tenho de ter um plano B.” Eu tive esse plano na faculdade, até cheguei a dar explicações. Tentei conciliar tudo, mas percebi que não tinha bases para evoluir. Foi quando percebi que tinha de ir tirar o mestrado. Com o mestrado, consegui trabalhar na secção [de Desporto Adaptado do FC Porto] e conciliar os treinos. Tenho uma entidade patronal que compreende perfeitamente todas as necessidades associadas ao desporto e me dá dispensa para ir para as competições.
O Boccia passou a ser a minha vida, aquilo que me motiva e me faz sonhar durante a noite. Às vezes, acordava a pensar nisso e passou a ser um desejo alcançar as metas a que me propunha. O desporto passou a ter um impacto brutal, porque ganhei experiência, autoconhecimento e vivi muitas coisas. Com o Boccia, ganhei a oportunidade de participar nos jogos paralímpicos, algo com que nunca tinha sonhado.
Atualmente, está na 5ª posição do ranking mundial e é uma referência nacional no Boccia. Quais foram as competições mais marcantes a nível nacional e internacional?
A nível nacional foi a competição regional em que pela primeira vez fiquei em primeiro lugar. Marcou-me muito! A nível internacional, não posso deixar de falar nos Jogos Paralímpicos do Rio, em 2016. Ainda que não tenha competido na vertente individual e que tenha sido só a pares, para mim foi das experiências mais marcantes de sempre. Os Jogos Paralímpicos de Tóquio foram completamente diferentes, foram atípicos, com muitos fatores associados. Mas os primeiros jogos, sem ter experiência e perceber que só os melhores do Mundo é que lá estão e que eu estava lá… acho que aí é que me caiu ‘a ficha’ e me apercebi do significado do que é estar naquele lugar. As pessoas não têm noção da exigência dos jogos paralímpicos. Pedem medalhas como se fosse fácil e como se quiséssemos perder. Nós vamos lá para ganhar! É de mim que sai o esforço, porque sacrificamos momentos em família, aniversários e o estar disponíveis porque temos de treinar. Só o fator de estarmos lá já é um grande mérito, fruto de um processo de excelência desportiva muito grande. Nestes Jogos Paralímpicos de Tóquio, ficámos em quarto lugar, uma posição que nos deixou muito felizes porque foi um excelente resultado, tendo em conta tudo o que se estava a passar.
Como referiu anteriormente, é atleta do Futebol Clube do Porto e a responsável pela área social da Secção de Desporto Adaptado dos ‘dragões’. Como se sente em pertencer a esta secção e quais são os seus principais objetivos para o desporto adaptado?
Seja como responsável ou enquanto atleta, os meus objetivos fundem-se. Como atleta, tenho uma sensibilidade muito maior, o que pode ser benéfico para o meu trabalho que é ajudar os atletas que querem praticar o desporto adaptado. Por outro lado, os principais objetivos passam muito pelo desporto, mais propriamente pela parte da competição e não tanto pela área social.
Cada vez mais, existem disparidades entre os géneros neste tipo de modalidades. A Carla é a única mulher da sua classe a competir por Portugal. Sendo que participa em diversas campanhas, o que faz para combater estas disparidades?
O Comité Paralímpico decidiu que ia abrir uma quota feminina para obrigar os países a terem mulheres, porque até eles viram que, se não se abrisse essa quota, não haveria mulheres no Boccia. É uma modalidade mista, mas sempre existiram mais homens do que mulheres. O desporto em si é muito associado aos homens e parece que as mulheres não têm um papel importante. Portanto, tento sempre dar o exemplo e passar uma mensagem positiva às mulheres que chegam ao desporto, mesmo de outras modalidades, de forma a motivá-las. Nesse sentido, coopero com a Federação e com o Comité Paralímpico, no sentido de fazermos o apelo para as mulheres virem praticar Boccia. Eu acho que, tal como eu, podem existir outras ‘Carlas’ a vingar no desporto.
A importância da saúde mental no desporto
A saúde mental é dos temas mais abordados atualmente na sociedade, pois vivemos há dois anos em pandemia mundial provocada pelo vírus coronavírus SARS-CoV-2. Sendo esta uma das suas áreas de ação, na sua opinião a saúde mental é um fator influenciador no desempenho de um atleta de alta competição?
Esse assunto está mesmo na moda e é uma parte muito importante que tem de ser trabalhada. Nos últimos quatro anos, tenho vindo a trabalhar muito a parte psicológica, mais a nível do rendimento no desporto, de lidar comigo própria no contexto desportivo, porque às vezes não é fácil. Sou muito autopunitiva, ou seja, falhei uma jogada, falhei algo e aquilo na minha cabeça é como um chicote. Nestes jogos paralímpicos, antes de começarem, existiram muitas coisas que nada tiveram a ver com o Boccia, mas que mexeram muito comigo. Os três meses antes dos jogos foram intensivos e cheios de trabalho, treinava todos os dias das 9:00h às 18:00h num pavilhão. Senti que no Japão não dei tudo o que podia ter dado, porque não me sentia bem psicologicamente, foi muito complicado. Mesmo quando regressei não me sentia bem, estava num cansaço extremo porque não tivemos nenhuma pausa. Durante a pandemia, tivemos três ou quatro meses sem treino específico. Fazíamos treinos online com preparação física e tentávamos criar algumas dinâmicas, mas de qualquer maneira sentia-me muito frustrada. Eu não senti que aquele período fosse [período] de férias, porque não foi. Eu estava muito tensa porque não sabia se os jogos paralímpicos se iriam realizar. Estivemos sem competição internacional quase dois anos, até eu ir para os jogos. Estávamos sem preparação e íamos competir na maior competição do planeta. O atleta tem de estar bem fisicamente, psicologicamente, num todo, para conseguir ter rendimento.
Para terminar, qual é o seu lema de vida?
Passa muito por ser grata e ser grata não é um estado de espírito. Não é, por exemplo, acordei bem hoje, por isso, estou grata. Eu agradeço a Deus por todas as oportunidades que me dá e acredito que existe um propósito maior. Há muita coisa menos boa que acontece na nossa vida, mas que é pelo melhor, ainda que às vezes nós não concordemos. O meu lema de vida passa por aí: ser grata por ter aquilo que tenho, por tudo o que conquistei, mas creio que irei conquistar ainda mais!