Crime, delinquência, tráfico de droga, assaltos. O Bairro da Bela Vista sempre esteve associado à marginalidade e à violência. Quando é notícia, é-o por casos de polícia. O UALMedia foi descobrir o bairro mais problemático de Setúbal.
“Não trocava o meu bairro por outra casa qualquer. Temos lindos jardins, máquinas que a Câmara de Setúbal colocou para fazermos ginástica. A solidariedade dos vizinhos é excelente. Somos todos como uma família. Nos outros bairros, as pessoas nem se conhecem… Saem de casa e é só ‘bom-dia’, ‘boa tarde’ ou ‘boa noite.” Adelaide Nicásio Lourenço tem 63 anos. Veio de Angola, Luanda, para Portugal há 30 anos e é no Bairro da Bela Vista que mora há 24.
O bairro onde Adelaide vive, o cor-de-rosa, também conhecido como Alameda das Palmeiras, é o mais recente dos três grupos (os outros são o azul e o amarelo) que compõem o Bairro da Bela Vista. Adelaide é mãe de sete filhos, três dos quais já faleceram. Confessa-se uma apaixonada pela cozinha e isso é visível pelo cheirinho a Muamba (prático típico angolano) que fez para o seu almoço e de mais duas amigas, a servir no café Yaondelo. O café é propriedade de uma dessas amigas e está situado no interior do bairro.
“Eu sou uma mulher polivalente, mas o que gosto mesmo de fazer é cozinhar. Eu sou uma amante das panelas!” Quando chegou a Portugal, agarrou-se à cozinha, trabalhando em vários restaurantes: “Não tenho um curso de cozinheira, mas é o que gosto mesmo de fazer. Invento pratos e divirto-me muito a cozinhar para as pessoas. O doutor Eugénio Fonseca, presidente da Caritas, quando fazia almoços e jantares, chamava-me para cozinhar para, muitas vezes, 500 pessoas! Como não tenho possibilidade de abrir um restaurante, arranjei um pequeno atelier de costura. Por isso é que digo que sou polivalente.”
Religiosa e esperançosa no futuro, Adelaide vê o bairro como o local onde se sente mais feliz. “O Bairro da Bela Vista já foi um bairro muito problemático, é verdade. Mas, graças a Deus, isso acabou. Foi aqui que criei os meus filhos e é aqui que me sinto bem. A educação vem de casa e eu dei uma ótima educação aos meus.”
Relembra um episódio que aconteceu com um dos seus filhos, o Vítor: “Ele foi à praia com os amigos e encontrou uma carteira com dinheiro e vários cartões. Quando chegou a casa, foi ter comigo e deu-me a carteira. Vi vários números de telefone e fiz uma chamada para um que, por sorte, até era da filha da proprietária. Foram à minha casa quatro ou cinco pessoas! Estavam com medo por saberem que se tratava do Bairro da Bela Vista. À saída, disseram-nos que não esperavam que na Bela Vista houvesse pessoas boas!” Ainda acrescenta, com uma expressão óbvia, que “no bairro há pessoas boas e pessoas desordeiras, como há em todo o lado!”
Uma das filhas de Adelaide é asmática. Nas crises de asma, tem que levá-la ao hospital mais próximo. “Cheguei a passar pelo bairro às 2:00h e 3:00h da manhã. Nunca fui abordada… Muitas vezes, são os rapazes de outros lados da cidade que se aproveitam dos problemas que acontecem aqui e vêm queimar contentores, e outras coisas”
O olhar de uma geração mais nova
De uma geração mais nova, mas com a mesma opinião está Núria, 12 anos. A sua pele morena, cabelo volumoso e olhos muito rasgados chamam a atenção. Frequenta o 6º ano na Escola Básica da Bela Vista e vive no bairro (zona azul) desde que nasceu. “Acho os vizinhos simpáticos, nunca tive problemas. Uma coisa que eu acho positiva no bairro é os passeios que fazemos. No Verão, vamos ali às piscinas das Manteigadas, de Vendas Novas… Eu coloco sempre o bairro como positivo. Não me parece tão mau como as pessoas dizem.”
Apesar de ser muita nova, Núria tem a perfeita noção da má imagem que o bairro passa para o exterior. “As pessoas têm medo. Lembro-me de apanhar um táxi com a minha mãe e o senhor taxista não quis entrar aqui. Disse-nos que tinha medo. As pessoas interpretam mal o que vêem na televisão. Nem tudo é o que parece. Não trocaria o meu bairro por nenhuma parte da cidade. A vizinhança é boa, temos aqui um supermercado, temos autocarros que passam aqui, temos um jardim lindo, há escolas. Tem tudo!”
Mais à frente, “vizinho” do rio Sado e o que dá nome ao local, o bairro azul (composto por seis blocos de dois lotes, num total de 12 lotes, separados por ruas estreitas) oferecia, a meio da tarde, uma paisagem linda. Há crianças a jogar à bola e a andar de bicicleta. Há pessoas à janela, umas a estender roupa, outras a conversar, outras só a respirar o ar que vem do rio.
Numa das janelas, está Aline Santos, de 20 anos. Tem o irmão mais novo ao colo. Falta-lhe a disciplina de Matemática para terminar o 12º ano. “Os números e eu, eu e os números”, diz, rindo. Aline vive há quatro anos no bairro e é voluntária no projeto “Nosso bairro, nossa cidade”, um programa que conta com a participação ativa dos moradores do bairro da Bela Vista na reabilitação urbana, com o objetivo de promover a autonomia, a responsabilidade e o espírito coletivo. “Como sou voluntária no projeto, a relação com as pessoas do bairro é ótima, até porque sou uma das pessoas que fica responsável pelos filhos dos moradores. Levamos as crianças a passear noutros locais da cidade.”
Aline confessa que, antes de viver nesta casa, tinha uma péssima visão do bairro: “Há quatro anos, achava isto horrível, pensava que as pessoas eram más. A imagem que passa na televisão e nos jornais acerca do bairro é totalmente errada. Só é possível constatar isso, vindo cá.” Com ar intrigado, pergunta: “Porque é que as pessoas não entram no carro e vêm ver com os próprios olhos como isto é? Se viessem, viam as coisas de maneira diferente. A única imagem que passa é o vandalismo. Muitas vezes, o que acontece é, por um, pagarem todos. Acabam por englobar tudo no mesmo saco.” Uma vizinha e amiga de Aline junta-se à conversa: “Quando vim viver para aqui, os pais dos meus colegas não os deixavam vir cá a casa. Diziam ‘ela vive na Bela Vista, é melhor não…’. Isso revolta-me!”
Para Aline, sair daqui não é um plano a curto prazo. “Só daqui a uns anos e é para fora do país. Trocar este bairro por outro, nem pensar! Não ia ser a mesma coisa. Não ia ter a oportunidade de ajudar as crianças. É isso que faz parte da minha vida. O voluntariado, o que eu aprendi a fazer, foi aqui no bairro da Bela Vista.”
O bairro amarelo
O bairro amarelo é claramente o maior dos três bairros, sendo constituído por blocos com amplos pátios interiores. O interior do bairro é ocupado por equipamentos sociais de variadas instituições.
Teresa, de 54 anos, é auxiliar de serviços gerais num desses equipamentos, a Caritas Diocesana de Setúbal. Vive há 30 anos no bairro e reconhece que há uma melhoria nítida para quem tenha conhecido o bairro há dez anos, em particular na limpeza e na recolha do lixo. “Está muito mais limpo ultimamente, anda sempre aí uma empresa a tratar disso. Antes ninguém vinha cá recolher o lixo.” Aos rapazes a quem atribui os desacatos dos últimos anos, garante: “Muitos não são daqui e os que viviam já estão presos, ou mortos.” Teresa considera que os problemas existentes no bairro não têm a ver com o bairro em si, mas com a educação. “Isto não tem nada a ver com o bairro, mas com a educação de cada um. Há polícias que nasceram e foram criados neste bairro, professores, pessoas licenciadas…”
O acesso aos apartamentos do bairro amarelo é feito através de escadas e de corredores comuns situados ao longo de cada piso. Espaços abertos com a função de permitir a convivência entre os moradores e de estabelecer ligações entre os vários quarteirões. Sobretudo, foram pensados como uma forma de resolver problemas habitacionais e sociais – de integrar, em suma. No entanto, Teresa mostra que há pessoas que não o vêem dessa forma. “Pessoas que não são do bairro dizem que isto se parece com caixas de fruta!”
Relativamente ao preconceito, acrescenta que “dentro do meu posto de trabalho há uma colega que fala muito mal do bairro. No entanto, é aqui dentro que trabalha!” Tal como a colega de Teresa, são mais as pessoas que vêem o bairro da Bela Vista de uma forma pejorativa. “O meu marido convida os colegas para virem jantar a nossa casa e eles não querem. Quer dizer, nós vamos à deles e eles não vêm à nossa, porque nós moramos num bairro social? Eu fico fula! Porque é uma discriminação!”
À conversa junta-se uma colega de Teresa: “Isto é só fama! Conheço pais que ficam reticentes em colocar os filhos na Escola da Bela Vista. Não percebo! A minha filha anda ali há tanto tempo e nunca houve problema. É uma escola igual a outra qualquer!”
Teresa acena com a cabeça, dizendo que sim e conclui: “A comunicação social também tem muita culpa no ‘cartório’, porque tudo o que se passa de violento em Setúbal é sinónimo de Bela Vista. Há uns anos, vi uma notícia na televisão que dizia que, na Bela Vista, se tinha passado qualquer coisa. Pensei cá para mim ‘então, mas isto nem é aqui, é na Bento Jesus Caraça…’ É perto, mas nada tem a ver com o bairro. Tudo o que é mau é Bela Vista! Deve dar menos trabalho, sei lá! Houve um senhor que se suicidou e aparecia no jornal que era da Bela Vista. No entanto, o bairro onde morava chama-se Bairro Afonso Costa, nada tem a ver com a Bela Vista. Vivo há muitos anos aqui e, nem por um segundo, tive medo de cá estar.”
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular de Técnicas Redactoriais II da licenciatura em Ciências da Comunicação.