Entre flagrantes de maus tratos e a procura por um futuro melhor, Dénia, Viana e Malam são figuras invisíveis que relatam o preconceito e alienação atribuídos ao uniforme. Dénia é coordenadora e tem a seu cargo 22 auxiliares de limpeza, Viana é a mais recente contratada e Malam é um de dois trabalhadores do sexo masculino. Três perspectivas de uma história comum a milhares de portugueses e imigrantes.
Ouve-se o burburinho dos clientes, no fundo do Piso 1. São 19:25h e o deslizar das rodas no pavimento faz os mais distraídos rapidamente desviarem o olhar. De cabelo curto e sorriso envergonhado, aos 58 anos, Viana Sá empurra o carrinho da limpeza de corner [loja] em corner, à procura de embalagens vazias. Traz vestido o uniforme que, em tons de cinzento escuro, tem escrito o seu nome a letras pequenas, já desgastadas. De nacionalidade guineense, começou na limpeza em Portugal, após imigrar de Nice em 2015 para ajudar a família. E com mais de 17 anos no ramo, descreve, em poucas palavras, a profissão como pesada e sofrida . “ Não é trabalho para ninguém, filha, cansa muito e levantamos caixotes pesados todos os dias”, desabafa. Enquanto entra no elevador de serviço e prepara-se para mudar de piso, recebe uma chamada da coordenadora com as diretrizes a seguir perante os recentes episódios das cheias que alagaram o shopping.
O relógio marca agora 20:00h. As portas do elevador abrem-se no Piso -2. Ao fundo do estacionamento, uma porta que entreaberta deixa passar o eco de uma conversa telefónica entre responsável e auxiliar. Sentada numa cadeira à secretária, em frente aos mais de cinco caixotes de lixo portáteis, Dénia Soares inicia a sua hora de jantar, com uma dose de chamadas sobre a coordenação de horas noturnas. Aos 39 anos, diz ser muitas vezes obrigada a escolher entre comer e trabalhar. “ São ossos do ofício”, sussurra, dizendo serem nuances de uma carreira que não escolheu. Entrou na limpeza em 2012, aquando da sua imigração do Brasil para Portugal. Mãe de um filho biológico e três adotados, embora tenha atingido uma posição de relevância como coordenadora, Dénia sempre sonhou ser advogada antes de trabalhar como “ama seca”, aos oito anos. Porém, nunca pôde estudar por dificuldades financeiras vividas pela sua mãe solteira. Em comum a outras histórias de imigrantes, com 24 anos veio para Portugal por motivos financeiros e entre a procura de trabalho e a espera pelos documentos, Dénia diz ter sido vítima de burla por parte de contabilistas, que procurou para se legalizar no pais.“Tenho uma penhora no meu salário até hoje, porque fui burlada por contabilistas em cerca de 2500 euros”, conta.
“O meu antigo patrão fazia questão de me humilhar. Obrigou-me a lavar calças e cuecas com coliformes fecais”
Sem documentos e com uma dívida nas finanças, 2016 marcou o nascimento de seu filho, Matteo, e a entrada no ramo das limpezas, para fugir à depressão pós-parto que sofria. Nesta altura, recebia cerca de 7,5 euros/hora na empresa Airbnb e em casas de família, chegando ao final do mês com um salário de cerca de 2000 euros. Porém, apesar de receber um salário acima da média do ramo, que ronda os 668 euros, diz ter sido nesse momento que as más experiências subordinadas à profissão começaram. Foi acusada de roubo de produtos alimentares por duas famílias para quem trabalhava e obrigada a lavar roupa contaminada à mão. “O meu antigo patrão fazia questão de me humilhar. Obrigou-me a lavar calças e cuecas com coliformes fecais várias vezes”, confessa. Conta ter várias histórias de casos em que foi abusada por patrões, nos seus seis anos de trabalho como auxiliar de limpeza. “Vejo a discriminação no olhar das pessoas, para nos diminuir”, salienta. Porém, não pensa sair do ramo. Acredita que, ao imigrar, o respeito dos estrangeiros pela profissão tal como os salários mais elevados serão o incentivo necessário para continuar naquela que diz ser a sua área.
Enquanto estaciona o carrinho ao pé da porta, Malam entra na sala de phones nos ouvidos e máscara a meio da cara. Com 24 anos, filho de um empresário e uma professora, Malam Seidi é um de 10 irmãos nascidos em Bafan, na Guiné-Bissau. Em 2019, viajou sozinho de Bissau para o Porto para uma casa com renda paga por dois meses. Porém, assim que chegou, percebeu aquela que diz ser a realidade de um imigrante. “O dono da casa quis colocar-me para fora com a renda paga. Levou as mantas e obrigou-me dormir no chão”, conta. Nos primeiros anos em Portugal, entre problemas de arrendamento e falta de emprego, o seu primeiro trabalho foi na restauração, apesar de ter experiência em ONG’s e formação profissional em Gestão de Negócios e Marketing. Durante a pandemia Covid-19, surgiu a oportunidade de trabalhar como auxiliar de limpeza em Lisboa, e, desde aí, o jovem diz ter conhecido um lado do preconceito que não está ligado só à sua nacionalidade, mas também à sua profissão.
“Quem está bem vestido, vê a nossa farda e confunde-nos com o lixo que apanhamos”
Numa sociedade machista, Malam é um homem numa profissão reservada somente as mulheres. Porém, conta que não sofreu discriminação nesse sentido, mas evidencia a desumanização atribuída ao cargo. “Quem está bem vestido, vê a nossa farda e confunde-nos com o lixo que apanhamos”, afirma. Diz ser alvo de comentários, olhares e até agressões verbais por parte de colaboradores, que exercem outras tarefas no shopping em que trabalha. Colaboradores que possivelmente recebem o mesmo salário, mas que por trabalharem em loja utilizam o seu poder ilusório para segregar os auxiliares de limpeza. “Posso ser um jovem pobre, mas não aceito desrespeito”, afirma. Cita um caso em específico, quando cumpria a ordem da chefe do piso de trancar o elevador para colocar o papel na reciclagem. Esta situação causou o atraso de passagem de elevadores que deu origem àquele que diz ter sido o caso de maior desrespeito que já vivenciou. Numa sequência de gritos e falas de teor baixo e preconceituoso, Malam foi erradamente chamado à atenção de forma abruta, por causa de uma ordem dada pela sua superior. Foram-lhe atiradas chaves e chamado por tudo menos o seu nome. Após queixa, o caso não deu em nada.
Despreocupado, o jovem deixa claro que situações menos agradáveis acontecem na vida de qualquer um, mas reconhece o facto de as pessoas tirarem partido da existência de auxiliares de limpeza para fazerem o que não fazem em casa. “As pessoas sujam mais, porque sabem que o empregado de limpeza vai ter de limpar”, confessa. Com objetivos de vida e sonhos por realizar, Malam deixa claro que coloca as suas prioridades na balança e que cada um é dono da própria história. “Não sou a minha profissão, tenho o sonho de estudar mais e abrir uma empresa como o meu pai”, afirma. E deixa a mensagem para os jovem que queiram entrar na profissão. “Todos nós temos a nossa história, não se deixe afetar e espere pela sua vez.”