Vencedor de três medalhas nos europeus de atletismo adaptado, “o alentejano mais rápido do mundo”, como gostaria de ser recordado, revela que é necessário muita determinação para derrubar barreiras e ser um vencedor, independente dos obstáculos que se atravessem no caminho.
Luís Gonçalves nasceu em Portalegre, a 12 de outubro de 1987. Atualmente, é atleta na empresa Sporting Clube de Portugal. Apesar de ter nascido com uma malformação genética, o desporto acompanha-o desde pequeno, quando ainda brincava com os amigos aos jogos olímpicos. Riscavam o chão com tijolo sem medida certa e viam quem ganhava. Mas foi quando veio para Lisboa tirar o curso de massagem auxiliar de fisioterapia que o atletismo entrou realmente na sua vida. Hoje, no estádio universitário de Lisboa, Luís Gonçalves desvenda as maiores fragilidades do atletismo adaptado. A primeira medalha que Portugal conquistou nos Jogos Paralímpicos Rio Janeiro 2016 deve-se a este atleta destemido.
O atletismo está presente no seu dia a dia desde muito jovem. Qual o peso que o desporto exerce e que lugar ocupa na sua vida?
Quando comecei a praticar atletismo, não tinha em mente grandes conquistas. Na altura, pensava apenas que não me queria tornar numa pessoa sedentária. Sempre adorei correr, mas, no Alentejo, não era muito fácil treinar ou competir. Após ter vindo para Lisboa, foi como uma bola de neve. Inicialmente, era uma brincadeira, mas com o tempo tornou-se sério. Acho que isto é o meu vício. Mas o mais importante é que não é uma responsabilidade para ninguém, apenas para mim e isso sim é a minha paixão.
Conquistou três medalhas nos europeus de atletismo adaptado, inclusive a medalha de prata em 400 metros T12. Como se prepara?
É preciso muito suor, sangue e lágrimas. É necessário treinar todos os dias e fazer uma preparação não em quantidade, mas sim em qualidade. O facto de treinar duas vezes por dia, todos os dias não significa que o treino esteja a ser realizado corretamente. Existe uma prática essencial por trás dos treinos, como a nutrição ou a osteopatia, para que funcione como um todo. Complementam-se de forma a evitar lesões e interrupções durante a preparação para as provas.
Qual a importância da medalha de prata que conquistou nos 400 metros T12?
No que diz respeito à conquista da medalha de prata, é um tema que ainda não ultrapassei. Os 400 metros são a minha especialidade, no entanto, devido ao fuso horário, ao qual tive dificuldade em habituar-me, cheguei a essa prova com um nível de desgaste muito grande. Era a prova mais importante para mim e, por isso, a conquista da medalha de prata ainda estar muito presente. Infelizmente, não pelos melhores motivos.
Convicções de vencedor
Como é a sua rotina diária? O que gosta de fazer, quando não está a treinar ou em competição?
Gosto muito de estar sossegado, de descansar, de ouvir música ou até ver um filme. Também gosto de estudar, por isso tento conciliar o desporto com o estudo. No entanto, por ser algo importante para mim, quero fazê-lo da forma mais correta e terminar com êxito. É complicado porque nem sempre tenho tempo e, apesar de ser algo que quero muito, por vezes, não tenho vontade devido ao cansaço que sinto. Mas sobretudo gosto de estar com a minha namorada, a Joana, e de estar com os meus amigos.
Sendo um vencedor, que lema de vida o inspira?
Não sei se será um lema de vida, mas aconselho as pessoas a nunca baixarem a cabeça e a não desistirem. Sei que, por vezes, não é nada fácil mantermo-nos erguidos porque existem determinadas situações que nos deixam de rastos, que nos levam quase a desistir do que mais acreditamos, mas nunca desistam. Ainda ontem ia quase desistindo, ali mesmo, na pista. Estava no treino de resistência à tarde e tínhamos de correr 40 minutos. A determinada altura, o meu corpo estava completamente de rastos e pensei: “vou conseguir nem que seja a arrastar-me” e continuei. Não estava a conseguir correr mais. Olhei para o relógio e faltavam 4 minutos. O fim parecia tão perto e tão longe. Corri, devagarinho, mas corri. Nunca baixem a cabeça, nunca desistam, vamos conseguir.
Atletismo paralímpico vs olímpico
Apesar das conquistas, o atletismo paralímpico não parece ser tão reconhecido como o olímpico. Que obstáculos ainda há a derrubar?
Desde há cerca de dois anos, têm-se verificado alguns progressos, que podem ser pequenos, mas que são enormes quando comparados com o que acontecia quando entrei para o atletismo paralímpico, há 12 anos. Portanto, desde há dois anos para cá deu-se um grande passo. Progressivamente, de ano civil a ano civil, começou a existir igualdade de bolsas olímpicas e paralímpicas. Por outro lado, estamos muito longe de conseguir o reconhecimento por parte dos meios de comunicação. Se perguntarem quem são os atletas Nelson Évora ou Francis Obikwelu, as pessoas talvez saibam, mas o Luís Gonçalves não.
Felizmente, a nível governamental, esse reconhecimento está a encaminhar-se e, até 2021, teremos um ordenado digno. No entanto, neste último ano, a seleção paralímpica teve uma grande visibilidade. Trouxemos 17 medalhas e, para obtermos esse destaque, temos de trazer medalhas. Em parte, percebo, mas, por outro lado, não percebo. A verdade é que não se pode homenagear todos os atletas. Fomos reconhecidos pelo Presidente da República, em 2016, depois dos jogos do Rio de Janeiro, de onde trouxemos quatro medalhas e apenas houve uma ou duas nos jogos olímpicos. Não peço uma ordem de mérito, mas apenas um agradecimento público ou pessoal.
Quando veio para Lisboa e ingressou no Estádio Universitário, qual era o principal objetivo?
Vim para Lisboa estudar. No entanto, precisava de um sítio para treinar e um amigo levou-me ao Estádio Universitário, onde também havia um grupo de pessoas que não via bem como eu. Falei com o treinador e ele pediu-me para me apresentar no dia seguinte para fazermos um teste de 200 metros, a fim de perceber como estava a minha condição física. E assim foi, apareci no dia seguinte e realizei o teste com um guia que depressa perdi na pista. O treinador ficou fascinado. Questionou-me, de imediato, se praticava algum tipo de desporto e, na verdade, foi aí que o “passarinho ganhou asas”. Depois, foi como uma bola de neve até aos mínimos para o Mundial.
Limitações de um sonho
Qual o melhor conselho que daria a alguém com limitações e que sonhe em iniciar-se na modalidade?
Tanto às crianças como aos jovens, o maior conselho que deixo é para não ficarem em casa agarrados ao computador ou à televisão. Tentem sair da vossa zona de conforto, procurem porque isso vai ajudar-vos, fazer-vos crescer e dar-vos autonomia. A verdade é que existiu uma alteração na sociedade. A infância dos mais jovens não é tão vivida na rua e, por isso, agora mais do que nunca, saiam de casa, arrisquem.
Ao longo do seu percurso, alguma vez pensou desistir?
Existiram três fases da minha vida em que, realmente, pensei em desistir. Sofri uma lesão muito grande, uma rutura muscular que me impediu de andar. Tive nove meses fisioterapia diária sem saber se iria voltar a andar ou não. Ao sétimo mês, quando a rutura já estava conciliada, o médico disse-me que poderia voltar a correr, mas sem grande expectativa. Após nove meses, comecei a treinar com o meu atual treinador, embora sem grandes compromissos. Foi complicado, pois durante cerca de dois meses treinava um dia e ficava lesionado uma semana e foi aí que tive de ajustar o meu treino. Deixei de correr 100 metros. Era uma prova de grande explosão. Passei para os 400 metros e foi a melhor coisa que fiz.
Outra fase da minha vida, da qual não me orgulho nada, foi quando acusei positivo no controlo anti doping. Continuo e continuarei a defender que não fiz de propósito e também que ainda bem, foi a mim que aconteceu e não ao meu colega. O meu colega estava a tomar uns compridos que continham cafeína, a verdade é que estava num campeonato da Europa, numa cidade muito calma e pacata e eu precisava de energia. Parecia que passado uns dias, o cansaço apoderava-se de mim. Pensei que um comprimido não me faria mal, e talvez não tivesse feito se apenas fosse cafeína o problema é que continha uma substância de um estrato de uma planta que, em mim, não teve efeito, mas que se refletiu no controlo anti doping. Por isso, ainda bem que foi detetado em mim, pois a concentração encontrada foi mínima e, caso fosse noutra pessoa, as consequências seriam piores. No entanto, foi uma fase da minha vida que não me orgulho nada e a consequência foi a suspensão durante dois anos.
E como superou esses momentos de maior desânimo?
Tive um pouco mais afastado do desporto no primeiro ano de suspensão. Caí muito e não tenho vergonha de o admitir, mas ao mesmo tempo não parei de treinar.Comecei a fumar um a dois maços de tabaco e a beber cerca de quatro litros de cerveja por dia. Contudo, dei a volta por cima. No segundo ano de suspensão, refleti e parei de beber, parei de fumar e foquei-me no desporto com toda a minha força. A minha suspensão terminava num dia, os prazos para os mínimos no dia seguinte, mas nesse dia depois de uma prova consegui inscrever-me na minha especialidade, os 400 metros. Fui competir e arranquei com a melhor marca europeia do ano, mesmo depois de estar dois anos sem competir.
Outra fase onde pensei, realmente, em desistir foi a um mês dos jogos do Rio, aí foi uma grande lição de vida. Fui campeão do mundo e talvez tenha ficado com o ego rico. Acreditava que ninguém me poderia ganhar até chegar ao Europeu, onde nem à final consegui chegar. Apesar de estar garantido nos jogos do Rio, pois tinha feito os mínimos de acesso aos jogos paralímpicos, não tinha pretensão de ir, até o meu treinador me dizer: “Tu vais Luís. Vais encará-la como se fosse a prova da tua vida”. Fui e ganhei uma medalha de bronze. Pensei em desistir algumas vezes, mas nunca desisti.
É uma inspiração para crianças e jovens que lutam todos os dias para seguir os seus sonhos, tal como o Luís? Qual a sua maior motivação? O que o inspira todos os dias?
Às vezes, não me apetece sair cama. Está aquele frio de inverno horrível e custa-me sair da cama para ir correr para a pista, consciente de que vou sofrer tanto. Mas a maior parte das vezes, apesar de ter consciência do frio que faz lá fora, penso: “Vamos embora Luís”. São como aqueles 40 minutos que quase me rendi ao cansaço, mas a minha força interior falou mais alto e não desisti. Algo que me acontece sempre que vou a um campeonato internacional é dizer ao meu treinador que estou ansioso que chegue o próximo. Quando estou de férias, não consigo estar sem o meu treino, fico nervoso, agitado e nem consigo dormir ou descansar. Sou o tipo de pessoa que está na rua, vê uma corda e desata a correr para junto dela para começar a treinar ou vejo uma rampa e imagino logo o que fazer com ela. Por isso, tenho a certeza que, quando a minha carreira terminar, não vou ficar por aqui.
Horizonte de conquistas
Tem dito um percurso exemplar nesta área. Que expectativas maiores têm para o futuro?
Espero conseguir alcançar o que ambiciono. Para já, mínimos para participar no campeonato do mundo, no Dubai. Tive a oportunidade de estar lá perto no ano passado e fiquei deslumbrado. Brevemente, tenho três meetings com duração de duas semanas e será já no próximo mês de fevereiro. Apesar de certamente existirem outras prioridades na minha vida, espero alcançar a ida a Tóquio, em 2020; Paris, em 2024, e Los Angeles, em 2028.
Nestas suas expetativas inspira-se em alguém?
Gostava muito de continuar a competir até 2028. Estou agora com 31 anos e um dos meus grandes mentores terminou aos 40 anos, pelo que vou tentar seguir o seu percurso.
Numa entrevista, criticou o Governo pela forma como encara o desporto adaptado, inclusive a nível económico. Em que estado se encontra o desporto adaptado?
Há mais ou menos dois anos, como referi antes, as coisas mudaram. No ano passado, assinou-se o contrato para salvaguardar que, até 2021, em cada mês de janeiro, as nossas bolsas de preparação serão aumentadas gradualmente. Este ano, já existiu uma equiparação a nível de medalhas, ou seja, as medalhas olímpicas valem o mesmo que as paralímpicas. Atualmente, falta a parte do reconhecimento, pois esta atividade é a nossa profissão. Há uns anos, tínhamos algum apoio, até mais do que nos outros países. Hoje, passa-se o contrário. Muitos países têm apoios realmente bons e sinto que nós, Portugal, parámos no tempo. Infelizmente, não me parece que venhamos a ter tantos apoios.
Repara no que me aconteceu este ano: ganhei uma medalha de ouro na prova de 200 metros. No entanto, o Comité Paralímpico Internacional para Tóquio retirou-a. Ou seja, é uma prova não oficial e foi mesmo aí que fui ganhar a medalha de ouro. Apenas as medalhas de bronze e de prata são contabilizadas, pelo que desci do nível A para B, onde recebi 518 euros (nível B), em vez de 688 euros (nível A). Em 2021, prevê-se que o nível A esteja a receber 1325 euros, valor que Nelson Évora recebe atualmente como campeão da Europa.
Apesar de ser um grande passo, ainda não se pode considerar profissional, uma vez que não temos descontos. Ganhamos sim, bolsas de mérito. Existe uma regra que diz que, se um desportista tiver na alta competição, penso que durante 10 anos seguidos, fica a receber durante 10 anos o valor equivalente ao nível em que está, ou seja, é a única circunstância em que podemos chamar reforma.
Existe também outro problema, se fosse um atleta olímpico com resultados a nível nacional minimamente bons, iria ter patrocinadores, mas como sou um atleta paralímpico não é tão fácil conseguir patrocinadores. Contudo, não desisto de tentar. Tive contacto com uma marca, para mim, uma das melhores a nível mundial. Antes de mais, tinha de haver apoio do Estado. Houve um deputado que há uns anos disse que os atletas paralímpicos nunca poderão ter a mesma igualdade que os atletas olímpicos, pois eles ganham muitas medalhas. E voltamos ao mesmo, em parte percebo e em parte não.
Os jogos olímpicos têm a prova dos 100 metros masculino e feminino. Nos paralímpicos, nas provas de 100 metros, encontramos atletas de baixa visão, míopes, cegos totais, ambliopes, amputados de mão, pé, totais, paraplégicos, cadeira de rodas. Nesse sentido, entendo. São muitos atletas, mas também lutamos, também acordamos às 6 horas da manhã para treinar. Também treinamos com chuva, com frio, também sofremos com derrotas e comemoramos com vitórias. Acima de tudo, também tentamos, tal como eles.
Sendo o atletismo uma atividade muito completa, consegue identificar o melhor e o pior de dedicar a vida ao desporto?
É realmente muito completo. O melhor de ser atleta é as pessoas que temos o prazer de conhecer, os sítios que temos a oportunidade de visitar, as viagens que realizamos e, depois claro, estar por dentro da organização, naqueles enormes palcos que a maioria das pessoas vê na televisão; conhecer cada cantinho deles é muito gratificante. Mas como tudo na vida, existe o lado menos bom e, neste caso, é o facto de não termos muita vida social. Muitas vezes, gostava de ir conviver com os meus amigos ao sábado à noite, mas como tenho treino de manhã à tarde, já não tenho forças e, no domingo, aproveito para descansar.
Mais tarde e quando abandonar o desporto, como gostaria de ser recordado?
Confesso que gostava de ser treinador. Sinto que me iria completar bastante e me faria sentir realizado. Estou a pensar tirar formação de treinador de atletismo. Como gostava de ser recordado? Como o alentejano paralímpico mas rápido do mundo. Era assim que gostava que as pessoas me lembrassem.