É fácil descrer dos humanos e criar uma infindável lista de exemplos que permita legitimar e interiorizar a descrença. Descrer é fácil e até embalador, tanto mais que o perfil da nossa época herda, já de si, um horizonte generalizado de descrença. Quando ouço alguém dizer que “descrê do ser humano”, penso logo que o debate acabou, pois o argumento pertence à casa das coisas mais óbvias, daquelas que tranquilizam e guiam as convicções consumadas. A minha gata prefere espreguiçar-se a dar atenção a esses senhores girassóis.
No Ocidente (que hoje é muito mais do que um ponto cardeal no globo), o mundo moderno tem vivido da ascese da máquina e do crescente monopólio da programação, renunciando, apenas na aparência, aos mais variados rituais associados às transcendências. Na realidade, as ideologias eram formas lunáticas de transcendência, do mesmo modo que as linhas de montagem da morte (ensaiadas na primeira metade do século passado) também se ergueram em nome de um homem puro ou novo (ou fosse lá o que fosse na sua excentricidade maléfica). Daí que a crença inabalável não seja uma luz que contracene com as trevas da descrença, nada disso.
É talvez por causa destes lamaçais feitos de ‘preto no branco’ (a alta definição é um olhar telecomandado) que a Europa se tornou num hematoma perigoso e descontrolado. Quando se diz “Europa”, diz-se aquela paisagem arrasada pela violência que o continente experimentou de 1914 até 1945. No final da Segunda Grande Guerra Mundial, uma mais do que improvável utopia (sublinho “improvável”) decidiu criar um projecto sem precedentes, através da ‘união’ dos antigos contendores num devir económico que deveria ter evoluído para outras fasquias mais altas. O salto foi ficando a meio, desde o alvor do século XXI. Ninguém já se lembrava, na carne, da Europa em ruínas e a ferro e fogo. A dissuasão ocultou o tremendismo e este foi-se perversamente diluindo com o passar do tempo.
Faz agora 33 anos, o JL publicou um texto de Kundera sobre a Europa que hoje parece profético a este respeito. Leiamos o seu momento fulcral: “A Europa não se apercebeu do desaparecimento do seu grande foco cultural, porque, para a Europa, a sua unidade já não simboliza a sua unidade cultural. Em que bases assenta então a unidade da Europa? Na Idade Média assentava numa religião comum. Nos tempos modernos, numa altura em que o Deus medieval se transformou em Deus absconditus, a religião cedeu o seu lugar à cultura, que passou a significar a concretização dos valores mais elevados” (…) “Da mesma forma que, em tempos passados, Deus cedeu o seu lugar à cultura, é agora a vez da cultura ceder o seu lugar. Mas a quê e a quem?”.
Kundera já estava, neste texto, a tactear o universo de descrença que havia de fechar o rasgo utópico nascido nos idos do pós-1945. Nada mais fácil de conjecturar, pois os humanos, no mundo moderno, não foram nunca capazes de persistir para além do ‘seu tempo’. A memória é assustadoramente curta. Há pouco menos de um milénio, a construção de uma catedral perdurava ao longo de várias gerações, já que o tempo era entendido como uma dádiva que vinha de cima. Agora os rumores fundeiam por baixo e a existência é feita de fractura, de dígitos e da apoteose tecnológica. O que acontece desaparece logo: tsunami ao longe é hemorragia mediática por perto. E depois… o vazio. Estamos tão longe uns dos outros como Werther estaria da “vida” real; só que o personagem de Goethe ainda sonhava com as “encantadoras plenitudes” e, hoje, são as portas do Colombo ou do Vasco da Gama (os nomes são entidades por vezes tão irónicas!) que fazem de simulacro da plenitude. Uma sublimação da descrença, por outras palavras.
É para iludir o buraco negro da descrença contemporânea que se inventou o corpo diante da televisão, o corpo dentro da rede, o corpo caído no shopping, o corpo sitiado no ginásio, o corpo a fugir das vacinas; o corpo, enfim, a vociferar por uma liberdade tipo ‘barata tonta’, mais parecida com o vaivém controlado de uma bola de pingue-pongue tipo ‘new age’ do que com uma nave autodirigida a percorrer (sem rumo) as galáxias virtuais.
Neste cenário, qualquer forma de cepticismo tem um infinito fuel à sua disposição. Azucrinar filosoficamente ou de modo chão e letal (como acontece nos comentários que surgem na rede) faz parte desse fel. O outro lado da moeda luz como prata areada em dia de festa, na medida em que hoje tudo é ensaiado e encenado através de uma lógica ‘gourmet’. O discurso político, a publicidade e até o ‘stand-up’ respiram numa ordem de tipo transgénico. Tudo lhes é previsível: quer o que se diz, quer as esperadas reacções. É desta concordância que é feita a gramática a que a correcção aspira, pois ela alimenta-se freneticamente da descrença liofilizada; quer da que tem os seus apólogos, quer daquela que insufla os que (apenas imaginariamente) se lhes opõem.
Neste cenário, “to be or not to be” é uma e a mesma coisa. Sem querer cair no burlesco, é possível que, mais do que nunca, se precise de alma. Pelo menos na acepção de Amos Oz, desaparecido na semana passada, para quem a alma era descrita como “uma corsa ansiando por águas vivas” (‘O Mesmo Mar’, 1999).
*Kundera, M., Europa Central: um continente sequestrado in JL nº 164, 1985, p.22, P. Projornal, Lisboa.