De Gouveia para o mundo. Ana Borges iniciou o seu percurso há 15 anos, na Fundação Laura Santos. Atualmente, é a jogadora portuguesa mais internacional de sempre, contando com 153 internacionalizações. Ao longo da sua carreira, presenciou o emergir e a evolução do futebol feminino no nosso país. Defensora de grandes causas sociais, a internacional portuguesa demonstra a sua preocupação face ao machismo e aos casos de assédio sexual no seio do futebol feminino português.
José António Saraiva, num artigo de opinião publicado no Jornal SOL, abordou a temática da promoção do futebol feminino. Este afirmou que: “O futebol feminino é um pouco como as ciclovias: tiveram de as fazer à força, complicando o trânsito nas cidades, mesmo não havendo ciclistas. E assim vemos em certas zonas filas intermináveis de automóveis – e ao lado ciclovias desertas.” O que tem a dizer sobre isto?
[Suspiro] Essas são aquelas palavras que não merecem qualquer tipo de resposta. Nem sei se essa pessoa é sequer um ser humano porque, com as palavras que diz, ou não tem filhas ou não sabe o que é amor. Não há qualquer tipo de comentário sobre um homem machista!
Iniciou o seu percurso em Gouveia, na Fundação Laura Santos, e rapidamente atravessou as “fronteiras nacionais”: Espanha, Estados Unidos da América e Inglaterra, apesar de nunca ter escondido a sua admiração pelo Sporting Clube de Portugal. Porquê voltar para o futebol português?
Na altura, recordo-me de várias pessoas dizerem que era “um passo atrás”. Que era arriscado sair do Chelsea FC para uma equipa que tinha acabado de ser formada. No entanto, para mim, nunca foi um passo atrás! Como disseste, e bem, é o clube do meu coração! O clube em que sempre sonhei jogar! Para além disso, a minha mãe ficou doente, por isso, senti que naquele momento o mais importante era a família. Até porque já estava há dez anos fora do país.
“Tínhamos de levar os nossos próprios equipamentos de treino”
Estreou-se pela Seleção A, em 2009, e é neste momento a jogadora mais internacional da história do nosso país. Conta com 153 internacionalizações com a “camisola das quinas” ao peito. Como vê a evolução do futebol feminino, desde que começou até aos dias de hoje?
A evolução é imensa! Quando saí de Portugal, jogava numa distrital, em “campos pelados” [campos de terra batida] e em que tínhamos de levar os nossos próprios equipamentos de treino. É óbvio que, se compararmos com a realidade em outros países, verificamos que ainda temos um longo trajeto a percorrer. Contudo, estamos num bom caminho!
Quais são as principais diferenças?
Atualmente, vemos a Federação Portuguesa, as associações e até mesmo as “equipas grandes” a apostarem cada vez mais no futebol feminino português. Por exemplo, noutros tempos, a nível nacional tínhamos o Sociedade União 1º de Dezembro, o Clube Futebol Benfica e o Clube de Albergaria. Agora, contamos também com o Sporting Clube de Portugal, o Sport Lisboa e Benfica, o Sporting Clube de Braga e o FC Famalicão. É muito mais chamativo! Tanto a nível de público, como de patrocinadores. De certo modo, engrandece o campeonato português e faz com que mais jogadoras estrangeiras queiram vir jogar para cá.
“Antigamente, lutávamos para não levarmos mais de três golos. Hoje, já não é assim: lutamos olhos nos olhos com qualquer seleção”
Numa entrevista ao Zerozero, ao abordar a prestação da Seleção Portuguesa de Futebol Feminino, no âmbito das competições internacionais, afirmou: “Hoje em dia, entramos dentro de campo e sentimos que os adversários nos respeitam mais.” Considera que a promoção e a maior aposta no futebol feminino português, nos últimos anos, contribuiu para a evolução da qualidade da seleção nacional?
Sim. Tanto a divulgação como a maior aposta no futebol feminino português foram mais-valias para a evolução da qualidade da seleção nacional. Antes, a maioria das jogadoras da seleção jogava fora. Hoje, a maior parte joga no nosso país. Não no mesmo clube, mas no mesmo campeonato! Este fator é muito relevante, até porque não estamos muito tempo na seleção. Há meses que nem aparecemos lá. No entanto, o facto de estarmos constantemente a jogar umas contra as outras contribui para a melhoria das capacidades da própria seleção.
O que mudou para que se sentissem mais respeitadas?
Passámos a ter uma ideia de jogo em que todas estamos no mesmo “barco”. Somos muito unidas. Todas lutamos para o mesmo! Antigamente, lutávamos para não levarmos mais de três golos. Hoje, já não é assim: lutamos olhos nos olhos com qualquer seleção.
“Pessoas assim não têm lugar no futebol, têm que ser banidas!”
Os últimos meses foram marcados por diversos casos de denúncias de assédio sexual, em particular no FC Famalicão. O que pensa da forma como a comunicação social está a tratar este assunto?
É um tema muito delicado, até porque ainda há muito receio por parte das vítimas. Infelizmente, muitas mulheres e jovens têm medo de denunciar estas situações. Temem que não fiquemos do lado delas. Portanto, este assunto deve ser falado, para que se “quebre o tabu” e para que estes casos não se voltem a repetir! Relativamente à comunicação social, apoio o facto de divulgarem as caras e os nomes destes homens. Pessoas assim não têm lugar no futebol, têm que ser banidas! Aliás, estes episódios não são de agora, já vêm desde a altura em que os técnicos estavam ao serviço do Rio Ave FC. No fundo, ao serem reveladas as suas identidades, pode ser que aprendam e que ganhem o mínimo de vergonha na cara!
“Quando comecei a jogar nem sabia que existia uma seleção nacional”
Presentes no 22º lugar do ranking da FIFA, a Seleção Portuguesa de Futebol Feminino alcança resultados históricos. Sente que as vossas conquistas inspiram e incentivam as jovens que sonham um dia seguir carreira no futebol?
Sem dúvida! O facto de estarmos bem posicionadas, de já termos alcançado duas fases finais e de estarmos num play-off para o mundial contribui para que mais meninas queiram jogar futebol! Para além disso, a maior aposta no futebol feminino foi um fator fulcral para o crescimento da modalidade em Portugal. Há uns anos, não havia a divulgação que existe hoje em dia. Por exemplo, quando comecei a jogar nem sabia que existia uma seleção nacional. Neste momento, as jovens que se interessam por desporto sabem quem somos.
Que mensagem gostaria de passar às jovens portuguesas que desejam um dia representar a “seleção das quinas”?
O principal é nunca desistir. Devemos lutar sempre pelos nossos sonhos! Claro que vão existir muitos obstáculos: nem sempre vão ouvir um “sim”, muitas vezes vão querer jogar e os treinadores vão ter outras opções… Ainda assim, têm de pensar que são esses pequenos desafios que vão tornar-vos fortes! Esperem pelo vosso momento certo e nunca desistam!