A infância é das fases mais importantes para o desenvolvimento. Até que ponto vivências traumáticas nesse período afetam a pessoa ao longo da sua vida adulta? Três vítimas de abusos em criança recordam como acontecimentos negativos marcaram a sua existência.
Abusos na infância podem ter um impacto profundo e negativo na saúde mental de uma criança até à vida adulta. Várias pesquisas têm comprovado um aumento do risco de problemas comportamentais, como ansiedade, depressão e agressão. De acordo com o estudo “Os maus-tratos na infância e os efeitos no desenvolvimento: Estudo comparativo entre crianças com e sem registo de maus-tratos”, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto, entre um quarto a um terço das crianças vítimas de maus-tratos depressão maior quando chegarem ao final da década dos 20 anos. Segundo a investigação, “para muitos afetados, o início da depressão começa na infância, daí a importância de se focar na intervenção precoce antes que os sintomas de depressão apareçam nas crianças abusadas e negligenciadas”.
No estudo brasileiro “Os reflexos da infância na vida adulta”, da Universidade Estadual Paulista, é mencionado ainda que outros problemas psicológicos como transtornos de personalidade, de ansiedade, de stresse pós-traumático e alcoolismo poderão surgir motivados por esses acontecimentos traumáticos.
Acreditar no futuro
Luís Reis, hoje com 23 anos, conhecido por Luisão pelos jovens da CAT (Casa de Acolhimento Temporário) de Belém, em Lisboa, era uma criança que tomava conta das outras e que interrompia discussões. “Se era um dos nossos miúdos, tínhamos que a tratar bem. Estávamos todos no mesmo barco e ajudávamo-nos uns aos outros”. Atualmente, Luís Reispertence a um grupo do bairro que se auto intitula de “Red K Máfia” e já tem tempo de prisão cumprido. “Tive as mesmas oportunidades do que as outras crianças, só não as soube aproveitar. Além disso, estar no lar ajudou-me, mas também piorou a minha vida”.
A psicóloga Ana Gomes explica que “as vítimas de abusos na infância têm que ter ajuda, precisam de acompanhamento psicoterapêutico”. A terapeuta sublinha ainda que não é possível ler as reações humanas em linha reta e, por isso, é impossível determinar de que forma Luís ou outros jovens com histórias de vida semelhantes se comportarão quando confrontados em situações com situações como, por exemplo, a paternidade: “Há quem tenha sido vítima de maus-tratos, mas que, de alguma forma, consiga funcionar com isso e, quando experiencia a paternidade, fica muito atento a não fazer nada como os seus pais fizeram. Quer ir exatamente pelo caminho oposto, tornando-se quase um mote de vida. E depois há aqueles que repetem o modelo, repetem o padrão.” Apesar das opções de vida e dos episódios ligados à criminalidade que o têm assombrado, Luís Reis afirma com convicção que deseja algo melhor para o seu futuro. “Quero dar uma educação aos meus filhos melhor que a que eu tive.”
Lutar para ser diferente
Iuri Semedo tem 22 anos e dá aulas de zumba. Esteve durante o mesmo período que Luís Reis na CAT, mas ao contrário do colega foi uma criança problemática que cresceu e “atinou”. A determinada altura, Iuri Semedo começou a ver o mundo de outra maneira, ganhou objetivos de vida e descobriu um enorme gosto por fitness. “Sentia muita raiva, tudo me irritava. Mandaram-me ir viver com os meus tios e, a partir daí, comecei a atinar. Não sei explicar apenas passei a ser uma pessoa calma.”
Com apenas 22 anos, Tatiana Fernandes, vítima de abusos na infância e antiga residente da CAT, já é mãe de um menino de três anos. Nunca foi uma jovem problemática e tornou-se uma adulta cumpridora das leis. “Assim que descobri que ia ter o Leonardo, fiquei muito feliz, ajudou-me a crescer muito”, refere. Tatiana Fernandes inclui-se na categoria de vítimas que lutam para ser diferentes dos seus pais no que toca a cuidar dos seus filhos. Hoje, segue uma vida feliz e garante que não foi a gravidez que a afastou de uma educação superior. “Continuar os estudos não era algo que quisesse fazer mesmo antes de descobrir que estava grávida”, admite.
Para a psicóloga Ana Gomes, existem algumas explicações para estes casos de sucesso em que as vítimas crescem e se tornam adultos funcionais e pacíficos: “Uma capacidade muito importante desenvolvida na infância é a de revermos valor em nós próprios. Portanto, é quase como se tivéssemos sidos investidos afetivamente durante a infância e conseguimos sentir que somos pessoas com valor apesar do trauma, o que faz com que ultrapassemos melhor a situação. Uma pessoa que não tem isto, à partida, não conseguirá fazer.”
A terapeuta sublinha que, por norma, as vítimas de maus-tratos “são pessoas com outra capacidade de resiliência. Todos nós temos capacidades diferentes”. Tatiana Fernandes saiu da CAT para um lar nos Anjos, em Lisboa, com um conceito diferente, uma residência de autonomização. Este tipo instituição não serve apenas um propósito temporário. Funciona para jovens mais velhos que demonstram estabilidade e responsabilidade poderem viver juntos e aprender a ganhar independência para quando alcançarem a maioridade já terem capacidades desenvolvidas, uma vez que o seu processo legal prevê que não conseguirão sair do sistema até aos 18 anos.
Neste conceito, o número de educadores é muito mais reduzido, numa tentativa de ajuda à colaboração e gestão dos recursos, como mesada. “O lar era misto. No entanto, a minha gravidez não esteve relacionada com esse fator”, conta. A jovem acredita que, talvez, tenham sido as capacidades adquiridas nesta residência que a ajudaram a uma adaptação tão rápida à vida adulta e à maternidade. “Foi como se me tivessem dado uma segunda vida e oportunidade.”