No nosso tempo, cada desordem anunciada é um vitral a mais da nova catedral gótica que nos narra sempre o mesmo e repetido Génesis. Vejam-se as ruas de Paris. Um Génesis que, no entanto, deixou de ser imagem e reflexão para passar a ser apenas presente. Como uma estrada fechada em si mesma e delimitada, aqui e ali, pelas bermas da correcção ou então pelas bermas da explosão. O presente não é uma imagem; é um vórtice. Na linguagem da actual ministra da cultura, a net poderia ser descrita como uma espécie de tourada que dá a volta ao mundo inteiro. Uma civilização a virar-se do avesso. Deformada pelos bárbaros, mas sobretudo pela velocidade da rede que convoca e desconvoca milagres, bits e estocadas.
Kundera glosou o tema da velocidade no conhecido romance A Lentidão (La Lenteur, 1997), fazendo coexistir tempos e personagens muito diversos que acabavam por contrastar, de modo paródico, com o ‘corre-corre’ ofegante dos nossos dias. Virilio, que morreu no início do passado mês de Setembro, tornou a velocidade na linha de força do seu pensamento, centrando-se nos mais diversos impactos causados pela acelaração da “omniurbe” global. A deformação, de que as fake news são hoje em dia apenas uma pequena parte, é uma das metáforas mais utilizadas para significar esta ruptura, este corte, este império ‘des-fáustico’.
O futurismo já tinha remado, de modo inocente, no sentido deste extravase das formas. Mas o importante (diria mesmo, o objectivo) do vórtice que habitamos seria atingir um grau em que o ponto de partida e o ponto de chegada fossem um único. O fundamental – da instantaneidade tecnológica – seria atingir um grau em que o imediatismo do gesto se redimisse plenamente sem ter que experimentar a iniciação, a travessia, a viagem e a passagem. Estas ‘pontes’, aliás, foram os temas fortes da literatura ao longo de séculos, embora nada nos faça admirar que, daqui a não muito tempo, ela venha a ser evocada enquanto vestígio e prática de uma era entretanto já extinta. A literatura, tal como o amor, sempre foi uma forma de espera e não um clímax logo consumado (ou cyborguisado).
‘Estar aqui’ e ‘estar já lá’ no ponto de chegada, ao mesmo tempo: eis o desígnio supremo. Uma espécie de fora de jogo existencial. Nem mais. Afinal sempre existe um fim último (ou um ‘eschatón’) nos nossos dias. Razão pela qual esperar se tornou numa patologia alimentada pela impaciência. Esperar (pelo paraíso, pela sociedade perfeita, por Godot ou por Ulisses) deixou de ser um modo de percebermos a vida. Em vez dessa postura de miragem e tantas vezes de intolerância, o agora-aqui aparece cada vez mais como um novo patamar de compressão. Uma compressão que deforma, que virtualiza, que confunde o que eu sou com o que eu não sou. Um vórtice que comprime imagens e que nos exila do próprio tempo, o único dom, segundo Séneca, que estaria disponível para a livre fruição dos humanos.
O “fast design” ilustra bem este abismado abreviar de processos. Esgotadas as patentes dos clássicos (um Charles e Ray Eames, um Girard, um Jacobsen, um Nelson, um Panton), não há hoje empresa que não se lance a copiá-las recorrendo a processos de produção e a materiais muito mais económicos. O resultado é uma espécie de ‘fast food’ aplicada a famosas poltronas, candeeiros e mesas que tendem a espalhar-se no mundo com uma celeridade ‘Kitty Cat’. É evidente que o meio cria e recria as suas divisões: de um lado, os que tentam cristalizar um tempo mitificado (como se os Pantons e os Eames fossem referências únicas); do outro lado, os bons anfitriões que reconhecem na economia, na massificação e na acelaração uma espécie de inevitável coerência da vida actual. O ‘fast design’ – que equivale à generalização das narrativas ‘light’ de supermercado – é uma das muitas facetas desta cadência meteórica que faz com que o ‘já’ se sobreponha sempre ao ‘ainda não’. Uma filosofia da impaciência que tende a reger hábitos, expressões e sentidos como se tudo fosse apenas óbvio. Um avesso sobreposto a um outro avesso, dando mostras de estar sempre do lado certo. Um Génesis ‘in media res’ e já não no início do caminho.
Se este afã é um facto no design e nas meta-ocorrências que nos batem à porta, também se faz reflectir no teatro. Quarto Minguante é o título de uma peça que fui recentemente ver ao Nacional. O texto – inscrito numa linguagem forte e sólida – é da Joana Bértholo e baseia-se, como pretexto apenas, no reatar ritual de situações domésticas. Uma das personagens em cena, Lara, surge como uma espécie de ‘peça fora do baralho’. O seu papel passa por estar ‘a mais’ no jogo proposto e tal teria sido outro sobre azul, se, na última parte, ela não tivesse tomado a palavra (e se, ao longo de quase toda a peça, ela não tivesse sido tão interpelada pelos outros personagens em cena). Mas a ideia é, de qualquer modo, brilhante: no meio da azáfama, da velocidade e da desordem corrente da vida, imaginar um figurante radicalmente ‘outsider’ que acaba por nos dizer muito mais do que tudo o resto, simplesmente porque ‘não pertence’ à história. Está aquém ou para além do vórtice (ela, sim, é imagem). Trata-se de um fora de jogo existencial – que diz com ênfase “eu sou” – bem diverso daquele que a instantaneidade tecnológica visa, mas não deixa, certamente, de o metaforizar. A razão parece-me óbvia: estar ‘off’ tende cada vez mais a ser uma patologia e não uma escolha livre. Cada vez há menos lugar para quem sobreponha o ‘ainda não’ a um massificado ‘já’ de teor inevitavelmente compulsivo, repetitivo e hipnótico. E isto não é lenga-lenga teórica, não. O Brasil que o diga.