Num curioso artigo intitulado ‘The 10 Coolest Foreign Words The English Language Needs’*, R. Aston revelou dez palavras de diferentes línguas que não têm correspondência em Inglês. Isto significa que estamos perante dez conteúdos para os quais não há termos em Inglês que os consigam traduzir cabalmente. Faço desde já, notar que nenhuma deles é “Brexit”.
Entre essas dez palavras consta uma portuguesa: “desenrascanço”. De referir que o conteúdo associado a ‘desenrascanço’, que equivale a ‘sair de situações complicadas através de repentismos não calculados e geralmente improvisados’, tem na nossa língua variados sinónimos (quase todos reflexivos), entre outros, ‘desembaraçar-se’, ‘safar-se’ ou ‘livrar-se’ de perigos ou de apuros.
Esta riqueza justifica-se pela mesma razão que, em Árabe, existe uma dezena de palavras diferentes para exprimir o conteúdo associado a ‘falcão’. Na realidade, uma língua tende a desenvolver e a enriquecer no seu acervo expressivo aqueles conteúdos com que mais lida, devido, entre outras possibilidades, às configurações da natureza envolvente ou ao usos e tradições dos seus falantes. Razão pela qual existe uma enorme escolha de palavras para dizer ‘falcão’ em Árabe (uma das consoantes do alfabeto até imita a sonoridade e a forma da ave de rapina) e razão, também, pela qual o conteúdo ‘desenrascar’ tem tanta saída expressiva na língua portuguesa.
Deixo aqui as restantes nove palavras referidas por R. Aston que veiculam conteúdos que não são propriamente da intimidade dos britânicos:
a) “Shlimazl” (‘Yiddish’) – Alguém permanentemente sem sorte.
b) “Tatemae” e “Honne” (Japonês) – O que alguém deseja acreditar e aquilo em que realmente acredita.
c) “Sgiomlaireachd” (Gaélico Escocês) – Referência a alguém que interrompe uma pessoa que está a comer.
d) “Tingo” (Pascoense) – Aquele que pede emprestado bens ou dinheiro a um amigo até o deixar sem absolutamente nada.
e) “Bakku-shan” (Japonês) – Uma rapariga lindíssima, desde que vista apenas por trás.
f) “Espirit d’escalier” (Francês) – Sempre que a palavra ideal ou apropriada é descoberta, já é demasiado tarde para a usar.
g) “Mamihlapinatapai” (‘Yaghan’) – Encontro entre duas pessoas que suscita a partilha de um desejo indizível e inexplicável.
h) “Backpfeifengesicht” (Alemão) – Um rosto que precisaria de ser trocado por outro novo.
i) “Nunchi” (Coreano) – Pessoa que age sem ter ideia alguma da situação social em que está envolvida.
Se dermos um passeio, em Português, pelos conteúdos que estas palavras veiculam, encontraremos quase sempre solução, facto que revela a nossa língua como uma boa viajante ao longo de quase todas as latitudes e longitudes do globo. No entanto, pensando em “Shlimazl” (‘Yiddish’), refira-se não há em Português um claro antónimo para “sortudo”, apesar de palavras interessantes tais como “desventuroso” ou “azarento”.
É claro que “Shlimazl” (‘Yiddish’) se aplica a qualquer fadista, forcado ou àqueles partidos políticos que, década atrás de década, se atrelam a 0,5% das intenções de voto. Já “Tatemae” e “Honne” (Japonês) andam nas proximidades do par ‘fezada vs. saudade’ ou ‘saudade vs. fezada’, sendo a respectiva ordem puramente arbitrária. A expressão “Sgiomlaireachd” (Gaélico Escocês) corresponderá, por sua vez, ao lusitaníssimo “empata”, seja o comprazimento gastronómico ou de outra natureza mais vivamente carnal.
Continuando a nossa visita guiada, “Tingo” (Pascoense) pisca o olho a ‘amigo da onça’, do mesmo modo que “Espirit d’escalier” (Francês) remete para a ideia de oportunidade perdida ou de fora de jogo existencial, embora sem grande solução portuguesa à altura. Para terminar: “Mamihlapinatapai” (‘Yaghan’) cheira a bloco central, “Backpfeifengesicht” (Alemão) acena a ‘cara de cu’, passe o plebeísmo metafísico, ao passo que “Nunchi” (Coreano) não anda longe de ‘patobravismo’.
A única palavra que não faz de todo jus ao Português é “Bakku-shan” (Japonês), a tal mulher linda de morrer, embora apenas percepcionada pelo lado de trás. Poderíamos alegar o reverso do ‘espírito de fachada’, mas estaríamos ainda muito longe.
O que faltará em Português liga-se, pois, ao tempo e ao espaço: por um lado, negligência face ao atraso da palavra certa a usar no momento também certo (embora, neste caso, se possa confirmar que os portugueses a têm sempre, fonte, naturalmente, do seu genuíno “desenrascanço”); por outro lado, negligência face à retaguarda da beleza feminina. É este último caso que mais deveria preocupar a psicanálise portuguesa.
Haverá uma razão para os portugueses terem educado sobretudo o ‘olhar para a frente’ em detrimento do ‘olhar para trás’. Repare-se que o território do nosso país é uma das finisterras que fecha a Eurásia e por isso aqui se foram acamando os povos mais diversos, durante milénios e milénios. Quem aqui ia chegando, esbarrava sempre no litoral e não podia perseguir a sua viagem, a não ser de barco. Foi por isso que os povos portucalenses se esmeraram em ficar pasmados a olhar para o mar, ou seja, para o lado da frente. Para trás ficava a saudade, esse espaço transbordante para o qual, ao modo de Orfeu, não se olha. Antes se imagina e percorre trágica e poeticamente.
Ao invés, com o imenso pacífico a leste, o Japão tem pela frente todos os continentes. Daí o hábito de olhar o mundo por trás, seguindo, aliás, o sentido do sol que, no seu itinerário de oriente para o ocidente, passa por lá todos os dias em primeiro lugar. Quem diz o mundo, diz o melhor que nele habita.