Atradição do policial é a tradição da boa gestão dos “saberes”. Há diversas receitas, todas elas abertas a grande inventividade, mas o nó górdio da teia é sempre o mesmo: o leitor só pode – ou, pelo menos, só deve – saber o que há a saber no final da narrativa. Nem sempre assim foi, apesar de haver quem diga que a Bíblia foi o primeiro grande policial que apareceu no planeta (o argumento é de policial e nem sei como é que Simenon não pôs Maigret a tratar dele: de quem foi a culpa de nós todos, mortais, termos aparecido neste canto do cosmos?).
Na maior parte das narrativas pré-modernas, as ferramentas literárias que todos interiorizámos há muito (complicação, clímax, desenlace, etc.) não passavam de coisas de extra-terrestre. As narrativas do mundo antigo e medieval eram crípticas por natureza, ambíguas, construídas de propósito para que algo de insondável se pudesse, aqui e ali, vir a revelar. Como se um segredo governasse o mundo e fosse missão do homem interpretá-lo.
O romance moderno que foi aprendendo a libertar as urdiduras com Cervantes, Diderot ou Stern e que, depois, as vincou com Stendhal, Tolstoi ou Eça, passou a democratizar o segredo: com a devida fleuma, passaram-se a conceder ingredientes ao leitor para que, ao longo do enredo, ele pudesse conjecturar e até imaginar esse segredo que, no final, e após situações mais ou menos extremadas e polidas, lhe era dado. Geralmente, não do modo como o esperava, mas tal como o desejaria. Sim: o desejo é mais forte do que as promessas de redenção.
Antes destes arrufos modernos e frágeis, tudo era realmente diferente. Tomemos como exemplo os Portenta, também considerados presságios. No fundo, eram imagens acopladas a mensagens literárias enigmáticas que, até ao limiar de setecentos, estavam associadas aos defeitos inusitados de parto, dissociando-se da maioria das monstruosidades que correspondiam sobretudo a criaturas que, segundo as mais distintas lendas, povoavam a periferia distante e desconhecida do globo.
Estamos a falar de um mundo tal como Richard of Haldingham o desenhou no século XIII, de acordo com o tradicional modelo T-O (o chamado mapa de Hereford). Ao centro do esquema de cor dourada, por cima do traço horizontal da letra T, surgia a Ásia e, por baixo desse mesmo traço, à esquerda, surgia o Nilo e, à direita, o Dom. Por sua vez, à esquerda e à direita do traço vertical da letra T (o Mediterrâneo), aparecia a Europa e a África, respectivamente. À volta do T, duas enormes circunferências davam a ver, não o que poderíamos pensar ser a atmosfera, mas sim oceano, apenas oceano sem fim. É para além desse desconhecido e vasto oceano periférico que, segundo diversas tradições, o mundo andava povoado… por criaturas monstruosas.
Para Santo Agostinho, a natureza estava, de facto, platonicamente dividida em duas partes: a da ordem e visível, que permitia ler os sinais da divindade, e a do inesperado e do incompreensível (ou do maravilhoso) que tinha uma única finalidade: mostrar aos humanos que existem diversos graus do “saber” que só a deus dizem respeito. Não é por acaso que, ainda no século XVI, a palavra curiositas* remetia, em grande medida, para um certo tom nada cordato de heresia.
Nesta história sem fim que é a história da gestão dos saberes que pululam nos relatos da tradição literária (e imagética), o segredo foi quase sempre um presente adiado. Foi-o nas versões medievais da carta do Preste João das Índias, nas imagens de Ravenna (1557), de Boaistuau (1560) e em muitas das que aparecem na Chronica mundi de Schedel (1493). O segredo só viria a ser devolvido ao comum dos mortais, quando, na alvorada do policial e do gótico (lembro-me de Os Crimes Da Rue Morgue de Poe), os crimes em ambiente lúgubre, as tramas em atmosfera soturna e nocturna e os novos labirintos urbanos passaram a conviver com um novo formato de enredo que passou a perseguir um objectivo claro: revelar, apenas no desenlace, um segredo. Mas revelá-lo. Mesmo se fosse imaculado. Mesmo que fosse comprazidamente subentendido. Entre nós, já sem falar dos segredos da (malvada) insolvência dos bancos, nem o de Fátima resistiu.
Faltará só explicar o que andamos a fazer neste planeta.
[1] Edward Peters, Libertas Inquirendi and the Vitium Curiositas in Medieval Thought in La notion de liberté au Moyen Age – Islam, Byzance, Occident, Société d´Édition Les Belles Lettres, Paris, 1985, pp. 89-98 (91).