Histórias com H é uma rubrica onde relatamos as mais belas histórias do desporto mundial. O episódio desta semana fala sobre a mítica final da Liga dos Campeões, em território turco, que culminou na vitória do Liverpool F.C.
No desporto, tal como na vida, milagres acontecem. São momentos que exaltam a fé desportiva e que ficam marcados nos compêndios da história do ser humano. Hoje, e aqui nos livros de história d’ODesportista, fazemos questão de lembrar o passado, mas acima de tudo, inspirar o futuro.
O milagre de Istambul, como é vulgarmente conhecido, inspira ainda hoje a esperança de um futuro melhor para os adeptos de um dos gigantes futebolísticos de todos os tempos, o Liverpool FC.
Qualquer um de nós, fãs/entusiastas/fanáticos de futebol, consegue, no limiar da nossa enriquecida memória, descobrir um ou outro jogo em que o resultado, estável ao olho nu, mudou drasticamente de faceta. Quando esses raros momentos acontecem, sentimo-nos privilegiados ao ver tamanha fantasia acontecer em direto, mesmo em frente aos nossos olhos. De cabeça, lembro-me de dois momentos pródigos em termos de tal espetáculo: a reviravolta do Barcelona frente ao Paris Saint Germain – os seis golos que destruíram uma vantagem de quatro dos visitantes; e a do Roma frente ao mesmo Barcelona – três golos sem resposta que catapultaram a Roma para umas meias-finais deslumbrantes. A ambos assisti e a ambos fiz a minha devida vénia futebolística.
Agora vou dificultar a tarefa: uma final europeia, onde em 45 minutos se mude um contexto impossível?
A época de 2004-2005, revelava-se ser mais um ano sem festejar qualquer troféu para um dos gigantes ingleses. O Liverpool atravessava um período de transição. O clube ainda não se tinha conseguido adaptar à mudança de uma EFL (English Football League) para uma renovada primeira divisão inglesa, a denominada Barclays Premier League. Agora com renovados contratos multimilionários que pretendiam dar ao campeonato inglês um panorama mundial, e com as mudanças nos cargos do leme financeiro e desportivo dos clubes, o Liverpool tinha-se afundado numa mediocridade nada condizente com a sua história. Apesar de tudo, e com uma tentativa de igualar, ou pelo menos, tentar lutar contra os orçamentos milionários dos seus rivais, o clube apostou em cartas internacionais, mais concretamente jovens espanhóis: a estrela em ascensão Xabi Alonso, Luis Garcia ou Josemi. Das camadas jovens estrelavam-se Steven Gerrard ou Jamie Carragher. O treinador, o espanhol Rafa Benitez, tentava impor as suas ideias numa equipa que ainda não tinha tido o tempo necessário para as acatar. Era, portanto, um Liverpool jovem, mas com qualidade a crescer a olhos vistos. Na FA Premier League, o clube das margens de Mersey terminava num quinto lugar condizente com uma época de altos e baixos. Na taça, tinha sido eliminado bem cedo pelo Burnley, enquanto que na taça da liga tinha chegado à final, apenas para perder com o Chelsea multimilionário de Abramovich.
Bem, até aqui, nada de espetacular. O Liverpool continuava o seu caminho, habitual nos últimos anos, diga-se. Mas a magia acontecia fora de portas. Na competição maior do futebol europeu e, arrisque-se, mundial, com certeza, os Reds tinham trilhado um caminho magistral pelos campos de relva do mais velho continente. Na fase de grupos, num grupo acessível com um Mónaco forte, os gregos do Olympiacos que pretendiam dar um ar da sua graça e os espanhóis do Deportivo La Coruña, o Liverpool acabava por passar atrás dos franceses e em igualdade pontual com os gregos. Tinha “sido à rasca”, em bom português. Nos 16 avos, e com duas vitórias bem cimentadas sobre um bom futebol versus os alemães do Bayer Leverkusen, era possível olhar para mais alguma coisa. Esperanças de um Liverpool europeu talvez… Mas as esquadras que fossem enfrentar o “Mighty” Liverpool estavam agora avisadas. Não iam jogar apenas contra 11 homens. Nas bancadas e pelo mundo, renascia aquela alma europeia do Liverpool do Ian Rush, de Bill Shankly, de Kenny Dalglish ou de Kevin Keegan. Os “supporters” queriam a taça. As noites de excelência estavam de volta a Anfield.
Nos quartos, e com uma nova alma, o Liverpool enfrentou a poderosíssima Juventus. A primeira mão em Anfield decidiu a jornada, já que em Turim o marcador ficou a zeros. Com uma atmosfera sufocante nos campos de Anfield Road, o Liverpool entrou a matar na primeira meia hora, sempre à procura do golo, e eles chegaram, através de Luís Garcia e do seguríssimo “poste” Hyypia. Apesar de Cannavaro ter ainda dado esperança aos italianos, o resultado manteve-se até ao final da eliminatória. O Liverpool estava nas meias, onde ia encontrar o carrasco do campeonato: os campeões ingleses Chelsea FC, nas mãos de Mourinho e da sua genialidade. Desta vez, a primeira mão jogar-se-ia na casa dos Blues. Ninguém, no mundo do futebol esperaria que chegassem tão longe, quanto mais vencessem uma equipa poderosíssima do Chelsea, com nomes como os de Drogba, Joe Cole ou Arjen Robben. Mas, e após uma primeira mão onde o nulo se impôs, o Liverpool jogaria a decisão na sua casa. Em Anfield. E isso traria uma nova esperança aos adeptos dos Reds.
Naquela noite de maio, viveu-se uma das páginas mais gloriosas da história do Liverpool. O ambiente era monstruoso. A final estava ali, a um golo de distância, a 90 minutos de acontecer. Aos quatro minutos de jogo, Garcia voltou a festejar, e com ele Anfield. Mas o jogo estava longe de acabar, aliás, estava no início, e o Chelsea atacaria com tudo o que tinha. Mas nada deteria um Liverpool embalado pelos adeptos. Apesar da avalanche futebolística sobre as redes de Dudek, o Liverpool agarraria aquela preciosa vantagem até ao último suspiro. Estavam de volta à nata do futebol mundial. Cheirava a Liverpool outra vez. Estava nas estrelas. Jogariam a final frente à constelação do Milan, em Istambul, na Turquia.
Há jogos e jogos. Centenas todos os anos. Milhares todas as décadas. Mas há aqueles que o adepto nunca esquece. Há aqueles que enfrentarão o desgaste do tempo e que desafiarão os limites da memória. O jogo no estádio de Atatürk foi um deles.
Durante o dia do embate, a cidade de Istambul parecia ser cortada ao meio pelo rio Mersey. Nas suas margens, os estivadores brutos das docas de Albert Dock trabalhavam as elevações de pesos pesados. Nos pubs, cantava-se: “Walk on with hope in your heart…”. Para quem lá aparecesse, sem perceber de onde tinha vindo e para onde ia, descobria-se em terras de sua majestade, tal a imensidão de adeptos vindouros de todos os cantos do planeta só para apoiar o Liverpool. A imagem, portanto, dentro do estádio, era incrível. De um lado, os também fervorosos adeptos da “squadra” italiana, do outro, uma imensidão vermelha viva do Liverpool. Os adeptos mais ruidosos do mundo. Para os adeptos, estava escrito e inscrito, a tinta permanente, e nos céus de Istambul, que a taça seria deles. De um lado, uma equipa estrelada milanesa, com Maldini, Kaká ou Crespo. Do outro, um Liverpool sob o comando do jovem, mas imperial, Steven Gerrard.
O jogo começa impiedoso. O Milan abre o marcador através de Maldini, que fez o golo mais rápido da história das finais. Teve de rápido como de venenoso para as hostes dos Reds, que não pareciam conseguir ripostar, e com aviso, o Milan volta a marcar. Crespo desferiu outro “murro num queixo já desgastado” do Liverpool. Após o segundo, chega o murro que parecia atirar as esperanças vermelhas para um buraco fundo, muito fundo. Crespo novamente, e finaliza uma primeira parte com três golos para os italianos. O sonho do Liverpool parecia ter acabado ao intervalo. Recuperar três golos em 45 minutos contra uma equipa como o Milan… nem nas fantasias mais selvagens. Mas, e interrompendo o silêncio de ambos balneários, começou-se a ouvir um canto. Parecia vir das bancadas de vermelho vivo. Era ensurdecedor. Ouvia-se a plenos pulmões o pedido e a força dos adeptos dos Reds: “Walk On Walk On, With hope in your heart and You’ll never walk alone, You’ll never walk alone”. O mote estava dado. Era o pedido de luta pelo orgulho.
Após o apito de começo da segunda parte, os jogadores, comandados por Gerrard, atacaram desenfreadamente a baliza do Milan. Pareciam elétricos. Fizeram o primeiro. O segundo. E o terceiro. Estavam de volta à luta, inacreditavelmente. O som no estádio era atordoante, pelo menos para os de nacionalidade italiana. Os jogadores eram embalados pelo “You’ll Never Walk Alone” e a verdade é que aguentaram o empate até aos penaltis. Mas a vitória não poderia fugir a uma equipa que fez o que o Liverpool fez. Com 3-2 nos pontapés de penalti, e com um brilharete de Dudek, que defendeu a hipótese final de remate de penalidade, o Liverpool sagrava-se, pela quinta vez, campeão europeu de futebol.
Como é claro, a conquista foi notícia em tudo o que era telejornal. Era histórico, incrível e quase fantasioso. É o desporto na sua essência mais elevada. É o mote para não desistir. É o exemplo da perseverança e da luta. Foi uma das vitórias mais espetaculares de todos os tempos. Ainda o é. Poucos esquecerão o que se viveu naquele dia. Este ano, na temporada de 2018/2019, o clube vive outro sonho. Poderá, passados mais de 25 anos, erguer novamente o título que lhe foge há demasiado tempo? Será que poderemos ver o campeão voltar ao trono? Sob os sons de Anfield, esperam-se coisas muito positivas no final do ano. Vive-se história em Liverpool.