É cigano e não teme as palavras. Cresceu num bairro social e frequenta o segundo ano da licenciatura de Serviço Social . Desafia a cultura, quando luta pelo seu objetivo: estudar. Francisco Azul escolheu ser diferente, mas especial. Ao ID, explica a razão.
André Kosters/Lusa; Nuno Botelho
Desafia as regras ditas ‘normais’ da etnia cigana, a partir do momento em que decide prolongar os estudos. De miúdo ‘baldas’ a estudante do ensino secundário, frequenta atualmente o 2º ano da licenciatura em Serviço Social, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Porquê esta opção?
Querer continuar a estudar foi algo que sempre partiu de mim. Apesar de, nos meus tempos de escola, ter sido o rapaz ‘baldas’ que preferia os recreios passados a jogar à bola com os meus companheiros de equipa, a vida, no geral, e o futuro nas feiras, em particular, mostraram-me que é nos estudos que o futuro deverá ser feito. A escolha começou exatamente aí. Há um jogo mental que faço todos os dias, quando saio de casa, a partir do momento em que peso na balança vários fatores: tento não ser mal visto por parte da minha comunidade, pela fuga às ‘ditas-regras-normais’; procuro, ao máximo, enquadrar-me na sociedade, que ainda tem muito preconceito para com jovens como eu; e concilio os rituais familiares e o orgulho que os meus mais próximos sentem por mim. Desta forma, existe uma mediação que é necessária e que não depende unicamente nem de mim, nem de nós, ciganos, a partir do momento em que é em sociedade que convivemos.
Quando fiz a escolha de prolongar os estudos, em nada isso me fez esquecer a cultura que carrego e as regras completamente diferentes das da sociedade maioritária. A questão aqui coloca-se quando estas mesmas normas não são heterogéneas e podem-se conciliar com as demais. É isto que tenho feito desde há já vários anos, mas principalmente nesta fase atual da minha vida, em que estudo na universidade: crio um equilíbrio entre o que sou, de onde vim, o que a sociedade quer e o que anseio. Tento ter o melhor de vários mundos!
Como já disse, frequenta o curso de Serviço Social e esta opção, de certo, não foi casual, já que é óbvia a ligação à intervenção na sociedade. Foi influenciado pelo facto de poder vir a conseguir agir em prol da comunidade cigana?
Na verdade, a minha primeira opção, assim que terminei o secundário, foi Desporto. Estudei do 10º ao 12º anos Gestão Desportiva e a paixão por esta prática, desde sempre, foi notória. Jogar à bola ocupava o tempo do recreio com os meus companheiros de equipa que estavam lá sempre. Na altura em que terminei o secundário, tentei entrar em Rio Maior, mas a média não o permitiu. E talvez tenha sido o melhor que me podia ter acontecido, porque há momentos onde o ‘Francisco-ser-cigano‘ prevalece sobre todos os restantes que existem em mim. Estudar numa outra cidade, tão longe de onde vivo, iria fazer com que só aos fins de semana pudesse estar com os meus pais, os meus irmãos e os meus sobrinhos. Seria complicado gerir a partir do momento em que a proximidade familiar é algo tão característico em mim e em nós, ciganos.
Serviço social é uma área que me interessa bastante, pelo impacto que poderei vir a conseguir ter no futuro. Ajudar outros jovens ciganos, trabalhar com pessoas necessitadas e com carências no quotidiano, faria de mim alguém realizado por poder ser uma voz de esperança. Trabalhar nesta área faz-me sentir mais próximo da minha comunidade, tendo em conta aquilo que com ela posso vir a fazer. Ser uma ‘mais valia’, diria eu, junto das ‘minhas pessoas’, do meu bairro, dos ciganos que conheço e dos que nunca cheguei a conhecer, através da educação e informação, que acredito serem a melhor arma que possa usar, deixar-me-ia bastante satisfeito. Há cada vez mais uma mudança na mentalidade dentro da nossa comunidade e é preciso fazê-la ouvir. Ao ser mentor do projeto Opré Chavalé, sinto que é uma força extra para que nos consigamos erguer e mostrar de que somos capazes, que somos gente, Portugueses como todos os Portugueses. Temos a nossa cultura que nos individualiza, mas temos a mesma razão para fazer o que todos fazem na sociedade, sem ser necessário recorrer aos olhares de lado de que muitas vezes somos alvo. Ajudar outros jovens ciganos, iguais a mim, e poder incentivá-los para que persistam nos sonhos mesmo que, para tal, seja necessário uma fuga à regra, é uma meta que gostava de ver cada vez mais traçada. Porque, repito, com certeza, o futuro está em estudar. Ser um ativista na luta pela igualdade da comunidade cigana é a minha meta. Eu, que sinto o quão complicado é ser-se aceite na sociedade pelo facto de vir de onde venho, vejo na formação uma mais valia cada vez mais forte, enquanto arma, para derrubar muito dos preconceitos. A mudança é precisa e a sociedade… (suspira) …ainda tem muito que caminhar!
É inevitável dizer que não se sente diferente pela etnia a que pertence. Contudo, aos sonhos que orientam a vida pela qual luta acrescenta muitos desafios. Alguma vez sentiu não ter os mesmos direitos e deveres que todos os outros jovens?
Essa lógica de achar que não tenho os mesmos direitos nem deveres que todos os outros nunca foi algo que pensasse sequer na minha vida. Houve, sim, momentos em que me senti diferente e o preconceito em torno da minha etnia é uma realidade ainda muito vincada e que precisa ser alterada. Fala-se de desafios, certo? Os maiores são, sem sombra de dúvida, o facto de eu ser cigano e todas as tradições à minha volta influenciarem, de certa forma, o que sou. A família e os amigos mais chegados aprenderam a lidar com o facto de não querer fazer a vida de feira que é esperado fazer a partir dos 14/15 anos de idade. Houve um processo de adaptação para que se soubessem gerir as minhas escolhas de não casar nem constituir família, quando todos o começam a fazer a dada altura da vida. São tradições e a educação tem muita influência. Sempre me senti um ‘fora da caixa’, se assim o posso dizer, um ativista ‘pequenino’, um rebelde que pensou de forma distinta de todos os outros ‘iguais a mim’. Mas posso dizer que os meus principais desafios prendem-se com a minha tradição cigana e as opções que tive que fazer por prescindir de uns quantos rituais para continuar a estudar. Gostava de estar mais vezes com a minha família, acompanhá-la mais, passear com o meu pai e ir aos sítios onde costuma ir, mas os trabalhos e os exames exigem tempo de secretária e isso foi um desafio enorme que tive que incutir em casa para conseguir fazer, como tenho estado a conseguir, as cadeiras do curso. É um processo de reeducação e adaptação que todos juntos fazemos e gerimos.
Sobre ser diferente, como é sentir que o é?
Sobre ser diferente? Sinto-o muitas vezes, mas não necessariamente de forma negativa. Sei que sou especial para a minha família, porque sou desigual num mundo que espera que sejamos todos iguais. Os meus melhores amigos, primos direitos, praticamente da minha idade, são também ciganos e é aqui que se nota que não somos, de todo, iguais. Os estilos de vida são completamente distintos, bem como o futuro que nos espera. Os vínculos tradicionalistas da etnia cigana estão muito presentes neles porque seguem a norma, algo que em mim não é tão perceptível. Os dois já são casados, cada um deles tem dois filhos de uma companheira com a qual já mantêm relação há 4 ou 5 anos. Eu, desde cedo, comecei a pensar um pouco de forma distinta, porque não me queria casar na altura em que todos o estavam a fazer. Não que não gostasse da tradição, mas porque sempre tive em mente outro rumo para a minha vida. Sou diferente, mas a diferença é tão bem aceite pela família que o mais importante para mim é que me sinto especial.
Desta minha escolha, não vejo contras ao ponto de me arrepender pelo facto de ter feito o que fiz. Há um processo de aceitação das ideias quanto ao estilo de vida ‘cigana’ que escolhi para mim. O que noto é que fugi um pouco às expectativas do que é esperado que fizesse por ser cigano e ser como sou. Há fases vincadas na nossa vida, a partir principalmente dos 14 anos, quando começamos a ser vistos como homens, que podem ter acção na comunidade. O que sinto é que muitas das responsabilidades me fugiram pelos dedos, porque tinha na mão uma caneta sobre um livro. Enquanto, por hábito, vai-se para as feiras, eu mudava de passeio para ir em direcção à escola. São escolhas. Se me arrependo? (sorri)
Opré Chavalé
Pioneiro em Portugal, no que consiste o projeto Opré Chavalé que lhe permite ser, simultaneamente, mentor e estudante ?
Na língua romani, ‘Opré Chavalé’ significa ‘Erguei-vos jovens ciganos’. É um projeto inovador que consiste em apoiar jovens, como eu, para ingressarem no ensino superior. A verdade é que ser-se cigano e estudante universitário, em conjunto, está a fazer parte de uma nova realidade que faz de nós completamente iguais a todos os outros. O que nos diferencia é mesmo a cultura que carregamos no peito. Não perdemos as nossas tradições, aquilo que nos une ao ‘ser-se cigano’, mas conciliamos a nossa realidade com o sonho pelo qual lutamos.
Juntamente com Bruno Gonçalves e as Letras Nómadas, este programa é liderado pela ‘tia’ Olga Mariano, que vários anos esteve à frente da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas em Portugal (AMUCIP), e já foram alguns os jovens contactados. Eu tive essa sorte! Todavia, ocupei um pouco os dois lados, isto é, fui ‘semi-padrinho’ e ‘semi-participante’ porque, na altura em que o projeto andou para a frente, eu estava já inscrito e a frequentar o ensino superior. Por isso, acompanhei enquanto mentor, mas também como aluno.
Suporte familiar
A família é um suporte importante. Face ao seu gosto pelos estudos, como foi a reação à troca das feiras pelas páginas dos livros ?
Querer continuar a estudar foi algo que partiu, sem sombra de dúvida, de mim, mas foi um processo gradual o da aceitação pelos meus pais. Não é fácil gerir algo que não vai ao encontro com o expectável e o dito previsto. O que posso dizer é que a aceitação surgiu quando começou a ser percetível que em mim poderia estar um futuro diferente, caso continuasse a estudar depois do 9º ano. Foi aí que o apoio da minha escolha para prosseguir na formação se notou cada vez mais, até hoje poder dizer que me sinto um orgulho da família. (risos) A imagem do rosto da minha mãe, com um sorriso de orelha a orelha, é algo que me deixa muito satisfeito quando sei que é essa a reação que ela tem por eu ser como sou e estudar onde estudo. Sinto-me diferente, mas sou aceite na família e isso foi algo conseguido com tempo e compreensão, que caminham de mãos dadas.
Quando se sente que um filho faz algo para ter um futuro diferente daquele que os pais têm por não terem estudos e não saberem sequer ler nem escrever, o apoio é redobrado e a motivação recresce. Os negócios enquanto feirantes já não rendem o que rendiam e é necessário começar a dar um novo rumo a nós, ciganos, de forma a não seguirmos o que a sociedade espera que sigamos, caso essa não seja a nossa vontade. É o nosso futuro, são as nossas escolhas e uma coisa em nada descredibiliza a cultura e tradição que trazemos connosco. Ter o apoio dos que mais próximos me são na vida é, sem dúvida, o alicerce para hoje estar a estudar. Mas não é tudo bonito como pode estar a parecer. Vozes contra existirão sempre. Não é possível agradar a todos, se cada um de nós é tão diferente e vê a vida de forma tão peculiar. Com a minha família, a aceitação perante a minha continuidade nos estudos não foi algo que surgiu de um dia para o outro. Foi um processo gradual e moroso, mas até hoje acompanham todas a minhas fases aqui na faculdade e estão orgulhosos das minhas conquistas. A minha mãe, por exemplo, não larga a entrevista que dei ao Observador, por exemplo, e isso é uma pequenina demonstração de como está feliz pela minha escolha. E eu pela dela, em aceitar-me desta forma.
Metas e obstáculos
Quais são as maiores dificuldades em questões profissionais? As que sente que poderão ser obstáculos fortes no futuro, nomeadamente quanto à inserção no mundo do trabalho?
Em primeiro lugar, quero continuar a estudar, mesmo depois de terminar a licenciatura. Estou ainda um pouco indeciso entre seguir, no mestrado, Ciência Política ou Relações Internacionais. São duas áreas que me fascinam e terei de me decidir quando a altura de escolher o caminho chegar. Mas relativamente ao curso onde estudo, a área social em Portugal necessita de ciganos a trabalhar com ciganos e eu espero conseguir ter várias oportunidades que me façam aproximar desta questão que precisa de tanto ânimo para andar para a frente. A vontade na mudança está cá, só preciso que me permitam agir com todos os meus colegas e oiçam, respeitem e aceitem que nós, ciganos, somos tão dignos de trabalho como qualquer cidadão português, somos tão inteligentes independentemente da etnia a que pertençamos e somos tão responsáveis como qualquer outro indivíduo. Somos nós, portugueses, seres da sociedade e ciganos que queremos ser tratados e respeitados pelo que somos, pelo que podemos fazer em prol da sociedade, sem que isso seja necessariamente mau, só pelo facto de pertencermos à nossa comunidade.
Poderei sentir, e isso de certo que acontece também aqui na faculdade, discriminação quanto à questão de poder estar a ‘ocupar’ um lugar em prol de quem ‘mais do que eu, merece estar aqui’. Ainda existe muito a ideia de estar a ‘roubar’ a oportunidade a alguém com mais capacidades do que eu para estudar e, como tal, é injusto. Mas injusto é a forma como as coisas são pensadas e é aqui que sinto que posso agir, que posso mostrar que sou diferente, que sou ‘excepção’. Mas, como eu, tantos outros ‘Franciscos’ que por aí andam. As oportunidades devem-nos ser também dadas e não apenas o racismo e preconceito para com a nossa etnia. Existirão sempre pessoas que duvidam do nosso potencial. Olhar de lado e julgar o todo pelo igual é algo que acontece frequentemente. Somos discriminados quanto àquilo em que conseguimos contribuir em bem para a sociedade, sem sequer termos hipótese de provar o que valemos.
Considero-me um ativista, se bem que pequenino, um ‘fora da caixa’, como me queiram chamar, mas sou e serei um lutador pela igualdade de direitos da comunidade cigana da qual, orgulhosamente, faço parte. Nós já estamos a fazer o nosso trabalho nesta luta que é morosa e persistente, mas que é precisa e necessária. Já colocámos o pé na frente porque defendemos a mudança, mas há uma coisa que é certa: as nossas tradições e a nossa cultura estarão sempre aqui mas adaptamo-nos ao respeito que não só exigimos, mas que também é dado.
De toda a experiência que soma, das vivências pessoais e escolares, muito foi o que de negativo já teve que enfrentar. O que gostaria de dizer aos que consigo se assemelham e a todas as pessoas que, pelo preconceito, estereotipam e rebaixam a etnia da qual faz parte ?
Há várias palavras que gostaria de deixar para que não caíssem no esquecimento. Infelizmente, ainda existe muito preconceito para com as pessoas que se assemelham a mim. Porque ser cigano ainda tem muito a ideia incutida de ‘ser-se inferior’, ‘ter que estar na feira’ em vez de na escola a tentar um rumo de vida e futuro diferentes. A todos nós, ciganos, quero deixar palavras especiais. A persistência e o foco, para mim, são duas características essenciais. A partir do momento em que se luta muito por um objetivo, as dificuldades virão apenas e só em pequenos obstáculos. Mas basta querer. E muito. Não digo que seja fácil porque nunca o foi nem será. Mas, se a vontade persiste em nós, a determinação na nossa luta deve ser gradual para que consigamos atingir os nossos sonhos. O futuro, cada vez mais, está nos livros. É nas páginas que se encontra a sabedoria que, juntamente com as vivências, nos fará olhar para o mundo com outros olhos. É assim que eu penso e que na minha cabeça faz sentido.
A família é uma componente importante e tenho muita sorte na compreensão que os meus mais próximos têm para comigo. Porque não é fácil fugir-se à regra e ser-se diferente. Mas quando a satisfação interior está aqui, bem dentro de nós, capaz de nos motivar todos os dias a sair de casa para enfrentar o que o dia nos reserva, então, sim, vale a pena. O Nélson Mandela tem uma frase que é tão verdadeira e certa para mim como o meu foco nos estudos: “A educação é a arma mais poderosa do mundo.” A educação moral e os valores que me mantêm fiel à minha comunidade cigana estarão cá sempre, em tudo o que faça, principalmente o valor de respeito ao próximo. A questão é que, agora, conjugam-se com os valores da sociedade dita ‘de todos’ e o jogo mental para que haja um equilíbrio parte da determinação e da luta que faço diariamente para que os meus sonhos sejam compatíveis com a essência do que sou. O ‘ser cigano’ é algo que me descreve enquanto pessoa, isso nunca mudará, mas cabe a mim decidir o meu futuro.
A aceitação por parte dos outros é um processo que já não está nas minhas mãos, porque a informação é dada, mas cada um lida com ela como quer. Há um processo de integração que depende de ambas as partes e nós, ciganos, queremos provar que temos o nosso valor. Por isso, é tempo de respirar bem fundo e mostrar que somos capazes, que antes de sermos ciganos somos Portugueses. As oportunidades deverão estar sempre em prática numa sociedade que se diz democrática e livre, por isso, para quê estigmatizar? É preciso combater a ignorância e mudar mentalidades, por muito que o processo possa ser complicado. Mas, a partir do momento em que não é impossível, o esforço por si só vale a pena. Às vezes, o preconceito advém de situações passadas pelas quais não temos culpa alguma, mas somos alvo de generalizações; noutros casos, até pode provir de motivos tradicionalistas com ideologias políticas de extremo conservadorismo por parte das famílias preconceituosas. Pode parecer uma frase cliché, mas ‘conhecer antes de julgar’ será talvez a melhor frase que poderei dizer. E digo-a cheio de esperança, para que possamos viver com sentimento de dever cumprido em prol da comunidade cigana. Sinto-me diferente e isso não tem que ser mau. Sou especial. Tenho as minhas tradições, as minhas raízes, os meus rituais familiares e, ao mesmo tempo, estudo como quase ninguém, como eu, o faz. Feliz? Sim. Cigano? Também!