A peça Última Hora, de Rui Cardoso Martins, volta ao palco com o encenador Gonçalo Amorim no Teatro Maria Matos, após uma primeira temporada no Teatro Nacional D. Maria II. Num ensaio geral solidário para a Cruz Vermelha – que arrecadou 3.000 euros -, sente-se no ar o cheiro a esperança de que a cultura volte ao que era antes da pandemia.
O relógio marca 20:15h e já se vê a fila formada à porta do Teatro Maria Matos, localizado no coração de Lisboa. É visível o entusiasmo e o barulho percorre os corredores desta sala que abriu portas há 53 anos. Carolina Magalhães, estudante de Teatro, prefere não criar grandes espectativas. “Normalmente, gosto de vir sem saber muito sobre as peças. Não faço expectativas, quero desfrutar todos os momentos sem pensar no que vai acontecer no final.”
Com o ensaio geral solidário para a Cruz Vermelha marcado para as 20:30h, a sala começa a ganhar forma com as cadeiras a serem ocupadas. O barulho que percorria os corredores instala-se agora neste espaço. Os atores fazem os últimos ajustes aos personagens que dão novamente vida à peça Última Hora, que se estreou em outubro de 2020, no Teatro Nacional D. Maria II.
Última Hora é uma comédia escrita por Rui Cardoso Martins – ex-jornalista do Público e atual cronista do Jornal de Notícias – que quis mostrar a realidade da redação de um jornal: os seus defeitos, amores secretos, virtudes e vícios. Esta peça, tal como referiu Teresa Sequeira – da produtora Força de Produção, que faz a gestão do Teatro Maria Matos – tem o intuito de “dar uma nova vida a espetáculos que tiveram uma vida curta”. Este é o lema da parceria ‘D. Maria Matos’, firmada entre o Teatro Nacional D. Maria II e o Teatro Maria Matos para dar uma continuidade a espetáculos que estiveram em cena durante pouco tempo.
Do papel para o digital
Dez minutos depois da hora prevista, o silêncio instala-se na sala, as luzes apagam-se e o pano sobe. Estamos, neste preciso momento, na redação do jornal Última Hora, periódico que atravessa a maior crise de sempre. Com uma redação que parece ter parado no tempo devido ao aparecimento da Internet, da partilha grátis de conteúdos, da fuga dos leitores para as plataformas digitais e da facilidade da divulgação de fake news, os últimos dias do Última Hora aproximam-se.
Miguel Guilherme, ator bastante conhecido do público, é quem interpreta Santos Ferreira, diretor do jornal. Com problemas relacionados com o álcool, é contra a transição do jornal para o meio online, afirmando que não há nada que substitua o jornal em papel. O ator, que esteve durante 25 dias na redação do jornal Público com o intuito de se inspirar para interpretar o personagem, admite – no vídeo promocional da peça, disponível no site oficial do Teatro D. Maria II – que não foi tempo suficiente para perceber a vida de um jornalista, mas garante: “as palavras que uso no palco, acabam por me sair com maior verdade”.
Também a liderar o elenco, a atriz Maria Rueff interpreta a diretora-adjunta Sousa Neves que, com a ajuda de Santos Ferreira, quer fazer de tudo para salvar o jornal. Maria Rueff trabalhou no jornal Público, onde conheceu o encenador da peça, Rui Cardoso Martins, e com base na sua experiência desenvolveu a personagem. A atriz dá a cara a uma jornalista com forte personalidade que tem de assumir a responsabilidade de ajudar o novo CEO do jornal Última Hora a perceber quem deve ser despedido da redação. O CEO é Ramires Sá Saraiva, interpretado pelo ator José Neves. Este é o novo acionista e administrador que quer rentabilizar o negócio, acabando com o jornal em papel e transformando o Última Hora num jornal digital. “É uma crítica ao estado atual do jornalismo. A questão da imprensa é fundamental para a liberdade e para a democracia. Levado por estes conceitos decidi criar personagens cómicas, cheias de defeitos e virtudes”, afirma Rui Cardoso Martins.
Falar de jornalismo com humor
A peça é uma sátira ao atual jornalismo, tentando retratar, através de uma comédia negra, os problemas que o jornalismo enfrenta: vendas baixas das publicações em papel, pirataria nas edições digitais, publicidade a querer focar-se unicamente no digital, administradores que só se focam em lucro e audiências, e que não valorizam a profissão de jornalista.
O uso da comédia tem sido a forma mais terapêutica e incisiva de lidar com assuntos sérios, quando é bem feita. Se a comédia for feita de forma sensível, com bom senso e de forma inteligente, resulta sempre. Teresa Sequeira considera que “quando mandamos abaixo as barreiras através do humor, uma gargalhada ou um sorriso, deixamos logo as pessoas mais à vontade e mais recetivas, portanto, é uma boa maneira de lidar com assuntos sérios”.
No entanto, a comédia, muitas vezes, não é considerada uma “arte séria”. Em desacordo com esta ideia, Maria Rueff reforça no vídeo promocional da peça: “A comédia não é séria, é seríssima e é talvez o género mais sério.” Rui Cardoso Martins salienta que “a peça não é só uma simples comédia. Na verdade, podemos defini-la como tragicomédia: tem partes duras misturadas com tragédia e também partes com humor. O humor não é aligeirar, é aprofundar”.
Rui Cardoso Martins escreveu esta peça baseando-se na sua experiência como jornalista, para homenagear os jornalistas mais velhos, mas também para estimular os mais novos, o que faz com que a peça utilize muitos exemplos de situações reais e alguns termos próprios da profissão. Carolina Magalhães considera que essa é a sua maior dificuldade na compreensão do espetáculo. “Há muitas referências a aspetos que não consigo perceber porque estão muito ligados ao jornalismo. No fundo, sinto que quem não sabe sobre essa área, pode sentir-se um pouco perdido.” Contrariando esta opinião, Rui Cardoso Martins afirma que “qualquer pessoa minimamente informada percebe a peça. O humor exige alguma capacidade de quem está a ver”.
Entreajuda cultura – saúde
Este ensaio solidário para a Cruz Vermelha foi um agradecimento por parte do Teatro Maria Matos e da Força de Produção pela ajuda com que puderam contar quando os teatros voltaram a abrir depois de terem sido obrigados a fechar portas devido à pandemia Covid-19. “A Cruz Vermelha percebeu que tínhamos sido fortemente afetados e o custo dos testes na altura eram muito elevados. Se tivéssemos de testar 100 pessoas de uma só vez, era um prejuízo gigante. A Cruz Vermelha apoiou-nos desde o primeiro momento e isto foi a forma de retribuirmos o trabalho que eles fizeram não só connosco, mas com todas as pessoas ao longo destes dois anos”, afirmou Teresa Sequeira. A sala enche-se de aplausos e Ana Jorge, presidente da Cruz Vermelha, é chamada ao palco. “Estamos dispostos a apoiar o teatro, as artes e a cultura porque ela nos ajudará a ultrapassar estes tempos difíceis. A Cruz Vermelha vive destes apoios, mas está disponível para tudo aquilo que for preciso”, assegura.
Três horas após o início, o pano desce e o som das palmas invade a sala. Depois de um serão cheio de emoções, a alegria do público é contagiante. Os corredores voltam a encher-se não só de pessoas, como também de elogios. O Última Hora regressa a um novo palco. Sai a segunda edição.