Por trazer a música no coração desde criança, Ricardo Soler trocou a carreira de enfermeiro pelo desafio de assumir tantos outros papéis no importante, mas subvalorizado universo da cultura nacional. Brindou o público com a sua voz em projetos tão diversificados, como no Festival da Canção, em 2018, foi mentor em “A Tua Cara Não Me É Estranha” e integrou o elenco dos musicais de Filipe La Féria “West Side Story” e “Severa – O Musical”.
Sempre atento ao que estreia nos grandes palcos internacionais, o intérprete de 35 anos quer continuar a surpreender e a subir cada vez mais degraus no teatro musical. Em entrevista, revela como a música sempre esteve presente na sua vida e como uma aspiração de infância o levou ao mundo do espetáculo.
Como começou o gosto pela música e como iniciou o seu percurso profissional?
Sempre fui um rapaz muito introvertido e a música serviu para sair da casca. Como tinha mais dificuldade em fazer amigos na escola, usava a música como uma maneira de conseguir chegar às pessoas, ou para haver um tema comum de conversa. Mas por ser muito tímido, cantava sempre às escondidas.
Houve, no início dos anos 90, um programa para crianças na RTP1, o “Hanna Barbera”, onde havia sempre um convidado musical infantil. Uma vez pedi aos meus pais para participar e acabei por ir lá cantar. Depois, a partir dos seis anos e até terminar a licenciatura em Enfermagem, passei por um período escolar normal. Apenas cantava nos campos de férias, no verão. A música esteve sempre presente, desde pequeno que havia muita música em casa: primeiro o gira-discos, depois com as cassetes. Ouvia de tudo, desde The Beatles, a Zeca Afonso, Stevie Wonder ou Abba. Só não sabia se tinha qualidade vocal. Foi uma área que nunca explorei. Nunca estudei nem aprendi a ler música. Se me disserem para ler alguma nota musical, não o sei fazer. Comecei a ter aulas de voz há cerca de um ano, portanto, tudo o que aprendi foi através de imitação e de forma autodidata.
A primeira vez que cantei para um grande auditório foi com 13 ou 14 anos, num campo de férias. A música sempre fez parte da minha vida, eu é que nem sempre tive coragem de deitar a minha voz cá para fora. Só quando acabei a licenciatura é que pensei: “Se a nível académico correu tudo bem, por que não dar asas a este bichinho que tenho aqui dentro?” E foi aí que entrei na “Operação Triunfo”.
Como referiu, nunca estudou música. Sentiu que o facto de não ter essa competência técnica, o beneficiou enquanto artista?
Se desde pequeno tivesse começado logo a estudar música, teria ficado fechado dentro da parte técnica e rígida. Para ser músico, são necessárias muitas horas de estudo, empenho e trabalho. Como só comecei a sério depois de ter participado no programa de televisão, só aí senti a necessidade de investir em formação. Ao mesmo tempo, a experiência e os vários projetos que fui desenvolvendo fizeram com que me formasse no terreno, no palco. Há ensinamentos que a teoria nunca nos vai conseguir ensinar, só mesmo vivendo as coisas e passando pelas situações é que conseguimos mesmo aprender.
“Para ser músico são necessárias muitas horas de estudo, empenho e trabalho.”
É licenciado em Enfermagem. Alguma vez esteve indeciso entre que carreira seguir a tempo inteiro, se a de cantor, ator ou a de enfermeiro?
Quando entrei na “Operação Triunfo” foi na tentativa de perceber se a minha voz tinha potencial. O objetivo da participação também foi explorar a formação, na medida em que foram quatro meses com os melhores profissionais de música, canto e expressão. Deste modo, agarrei nesses conhecimentos e levei-os para o resto da minha vida artística. Ao participar, o objetivo era que, quando terminasse, pudesse voltar à enfermagem. Mas quando acabou o programa surgiram outros convites: o “Chamar a Música”, o “Festival da Canção” e depois o teatro musical. A partir daí, fui tentando conciliar as duas atividades. No início, quando estava muito tempo na música, sentia a falta da enfermagem e quando estava muito tempo na enfermagem, sentia falta da música. Mesmo que me dedique à música, não vou deixar de ser enfermeiro. Foi uma aprendizagem enriquecedora, tanto a nível técnico, como profissional e humano. Não exerço enfermagem há seis anos, estou de “pés juntos” na música, representação e na parte artística. Exerci enfermagem enquanto estava envolvido com outros trabalhos relacionados com o espetáculo. E, quando canto, coloco sempre em prática os ensinamentos que adquiri ao longo dos quatro anos, principalmente, relacionados com a parte humana.
No teatro musical começou a integrar o elenco de espetáculos de Filipe La Féria, como o musical “West Side Story” e, recentemente, “Severa- O Musical”. Como foi a passagem de cantor para ator de teatro musical?
Foi uma passagem inesperada, mas descobri que gosto muito. O primeiro musical a que assisti foi o “Rent”, em 2007, em Nova Iorque. Quando acabei de o ver, pensei que seria uma experiência que um dia gostaria de vivenciar. O bichinho ficou lá, embora adormecido. Surgiram outros projetos pelo meio, onde me dedicava apenas ao canto. No entanto, quando se canta, sobe-se um degrau que permite chegar a várias áreas: expressão corporal, interpretação, desenvoltura em palco, onde é possível deitar tudo cá para fora. Quando as audições para o “West Side Story” começaram, não conhecia o musical em si. Uma amiga é que queria muito fazer o casting. Quando estava com ela na fila, convenceu-me a tentar. Cantar, dançar e representar era uma coisa em que me sentia muito “verdinho”. Mas acabei por fazer a audição e ficar. Fiquei com um papel no coro.
Um dia, durante os ensaios, Filipe La Feria pediu-me para cantar “Maria”, a música do protagonista. Depois de me ouvir, disse: “Esqueça lá o que estava a fazer, a partir de agora é o protagonista”. Fiquei apavorado. Uma coisa é cantar, outra é representar e cantar. Acabei por aprender através da prática. Gostava de voltar a fazer o “West Side Story” com a experiência que tenho agora, nos dias de hoje. Em “A Severa”, interpretei uma personagem que nunca tinha experimentado, um género de vilão, que me deu imenso gozo. Senti que foi um processo bastante mais fácil por já ter comigo a bagagem da experiência, já estava mais amadurecido.
Neste meio, é preciso ser-se humilde e repetir mil vezes a mesma coisa para que, no fim, se consiga ver a evolução entre a primeira e a última vez. Esta passagem deu muito trabalho, mas posso dizer que estou satisfeito.
Cantar, dançar e representar, tudo ao mesmo tempo. O que considera ser mais difícil de realizar em palco?
No início, cantar era o mais fácil. Cantar e dançar é difícil. Cantar e atuar também é difícil. Os três ao mesmo tempo é o caos. À medida que vamos levando estas “tareias”, o corpo vai-se habituando. O mais difícil são as coreografias mais complexas. Participei numa revista em que tinha um número de sapateado com a Anabela e nunca tinha feito sapateado na vida. É preciso separar o cérebro do resto do corpo para que seja possível concretizar as duas coisas ao mesmo tempo. Mas com trabalho, dedicação e paixão vale muito a pena.
No último musical que integrou, “Severa-O Musical”, homenageia um género tradicional português: o fado. Como se sentiu por ter tido oportunidade de participar neste projeto?
Foi a primeira vez que representei uma personagem diferente do que vivi antes. Permitiu-me explorar um regime mais agressivo, mais sádico, mais “maléfico”. Não vejo o D. José como se fosse mesmo o vilão da história. Era o melhor amigo do protagonista, o Marialva e, no fundo, só queria o melhor para ele. Foi uma peça de sangue, suor e lágrimas para todo o elenco. Para mim, foi uma oportunidade porque pude explorar outras vertentes. Não relacionadas com o fado, porque tudo o que fiz foi puro teatro musical. Apesar de não o ter explorado, tive contacto com pessoas que percebem imenso do assunto e essa troca de conhecimento foi muito importante. Sempre gostei de ouvir fado, apesar de ser um género para o qual acho que não tenho muita aptidão, mas posso estar enganado e ainda não ter encontrado a maneira certa de o expressar. Desse modo, é uma área que ainda não explorei muito bem e, apesar de o tema ser Severa, a mãe do fado, acho que era um musical muito diverso em termos de estilos musicais. Fiquei com aquilo que chamo “canções monstras” porque eram muito difíceis de cantar e interpretar e com partes de representação muito difíceis de concretizar.
De todos os estilos de música que já interpretou, com qual é que se identifica mais?
É uma pergunta muito difícil. Gosto de cantar e de ouvir tantos estilos diferentes. É mais fácil dizer aquilo que gosto menos de ouvir ou cantar. Um exemplo é fado. Adoro ouvir fado, mas é algo que não me sai naturalmente. Gosto muito de música pop, eletrónica, R&B, blues, gosto muito de música de diferentes culturas e cantadas em diversas línguas.
Qual foi o momento mais marcante no mundo das artes?
Posso enumerar dois: a final da Eurovisão, em que estive no Altice Arena, no meu país. Aquilo estava cheio, não tem explicação. Ainda por cima, ficámos bem classificados na tabela. Outro momento alto da minha carreira foi quando ganhei o “A Tua Cara não me é Estranha Kids”, ou seja, o momento em que fiz com que a Diana ganhasse. Foi muito especial.
Quando me ligaram a perguntar se queria ser mentor de uma criança, apenas pensava: “Tenho dificuldade em orientar-me a mim próprio, quanto mais uma criança cheia de sonhos” (risos). A vida tem destas coisas, tem destes toques divinos. Juntar-me com a “criança”, que hoje tem 18 anos, cheia de vontade de viver aquela experiência, que mesmo sendo uma competição, levou tudo muito na desportiva, fez com que conseguíssemos tirar o melhor dos dois. Aprendemos imenso um com o outro e o culminar dessa experiência toda foi a vitória. Ganhar o programa como mentor foi espetacular. No outro dia, ela mandou-me os vídeos todos e emocionei-me imenso.
Participou, em 2018, no Festival Eurovisão da Canção pela Áustria, como integrante dos backing vocals, chegando mesmo à final. O que sentiu quando subiu àquele palco e ter de concorrer contra o seu país?
Quando comecei, era stand-in. Fiz uma audição em que cantei em islandês e fui selecionado. Depois de estar duas semanas a trabalhar nas canções que me foram atribuídas, o diretor artístico da comitiva da música da Áustria perguntou se não estaria interessado em integrar a equipa como backing vocal. É uma experiência tão enriquecedora que nem sequer se pensa no facto de se estar a concorrer pela Áustria, contra o meu país. Em cada uma das delegações, é muito raro que todos os artistas sejam da mesma nacionalidade.
Já tinha participado duas vezes no “Festival da Canção” e tinha dado como encerrada a minha participação no “Festival da Canção da Eurovisão”. Participar no ano em que foi realizado no meu país e aquele terceiro lugar no pódio, no seio de outras nacionalidades, foi muito importante.
A música é uma cola que une as pessoas todas, mesmo quando não se fala a mesma língua. Porque toda a gente tem uma música favorita, uma música que a deixa feliz ou triste. Há músicas para todas as ocasiões.
Existe algum espetáculo que gostasse muito de realizar?
Podia estar aqui a enumerar musicais em que gostava de trabalhar. Mas sei que gostava de fazer “Os Dez Mandamentos”. Gostava muito de representar Moisés, ou o “Príncipe do Egipto” porque são dois musicais muito diferentes. Quando for um bocadinho mais velho, gostava de interpretar Jean Valjean, nos “Miseráveis”, pois sinto que ainda não tenho maturidade suficiente. Vi o musical no ano passado, em Londres. Gosto sempre de acompanhar os musicais que são exibidos. Por exemplo, vi a “Gaiola Das Loucas”, em Madrid, “Mary Poppins”, “Rei Leão” e o “Aladdin”. Gosto de ver como se faz “lá fora”. Sempre que vou ver um espetáculo e estou a sentir as coisas boas que me estão a transmitir, fico tão envolvido que gostava de ser eu a estar ali em cima do palco e a fazer aquilo. Sei que foi bom, quando saio do teatro e não me lembro onde é que estacionei o carro.
“A cultura é essencial e enquanto não a tratarmos como tal, não vai correr bem.”
Tendo em conta a pandemia, como é que considera que ficará a cultura no pós-covid?
Neste momento, a cultura está em grandes sarilhos. A cultura é essencial e enquanto não a tratarmos como tal, não vai correr bem. Enquanto continuarmos com orçamentos tão baixos para a classe artística e a tratá-la desta forma, será sempre mau. A cultura de um povo é o que o define.
É uma sobrecarga para os profissionais de saúde que combatem na linha da frente. Estou no meio desta situação por ser enfermeiro e artista. Dois setores que não têm nada a ver um com o outro, mas que estão a sofrer na mesma, de formas diferentes e de uma forma horrível. Espero que quando tudo acalmar se consiga dar mais valor à cultura e a quem faz disto vida. Dar mais valor à arte em si. Quando sofremos a primeira vaga, os artistas tiveram um papel muito importante ao ajudar a manter a sanidade mental. Neste ponto, a cultura e a saúde estão de “mãos dadas”. Através dos diretos e dos concertos online, conseguimos ajudar as pessoas a não se sentirem tão sozinhas e desesperadas.
Este período de confinamento abriu algum espaço à criação?
Sim, mas ainda não posso divulgar. Com a pandemia, abri uma porta que tinha medo de deixar abrir e dediquei-me a escrever letras e a fazer música. Comecei a ter ideias para outros projetos e vamos ver o que vai sair dali.