Começou a carreira futebolística numa equipa de rapazes até ser obrigada a ingressar no futsal para poder continuar a jogar. Foi jogadora e convocada para um estágio da Seleção Nacional, mas acabou por pousar as chuteiras aos 23 anos, quando decidiu que queria dar o pontapé de partida no mundo do jornalismo desportivo. Hoje, é uma das caras da Sport TV e recentemente tornou-se a primeira mulher a relatar um jogo de futebol da primeira liga em Portugal.
Em entrevista ao UALMedia, Rita Latas fala sobre o trajeto profissional, o desagradável comentário de Jorge Jesus, as mulheres no desporto e o desejo de trabalhar para uma entidade europeia de futebol.
Foi federada em futsal e em futebol, passou por clubes como o Juventude de Évora, Clube Futebol Benfica e até chegou a ser convocada para um estágio da Seleção Nacional. Como é que o desporto entrou na sua vida?
Comecei a jogar no meu bairro, em Évora, e depois também na escola primária. Costumava jogar futebol com um vizinho e o pai dele questionou um clube sobre a possibilidade de eu poder ir jogar para lá. Realizei treinos e acabei por ficar nesse clube, tinha 10 ou 11 anos. Comecei numa equipa de rapazes, onde estive três anos. Só era permitido que as raparigas fizessem campeonato com os rapazes até aos 13 anos. Por isso, singrei depois numa equipa de futsal feminino porque foi a única hipótese que consegui arranjar. A partir daí, comecei a jogar futebol regularmente até aos 23 anos.
Quando é que decidiu colocar um ponto final na carreira de desportista?
Quando comecei a trabalhar. Era incompatível. Não conseguia por causa dos horários. Quando comecei a trabalhar na ABolaTV, a primeira empresa em que estive, tínhamos horários noturnos e, como os treinos eram à noite, os jogos ao fim de semana e trabalhávamos ao fim de semana, tive que escolher porque não conseguia fazer as duas coisas. Optei pelo lado profissional, apesar de me ter custado muito, mas tive de assumir essa escolha.
Licenciou-se em Sociologia pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e é mestre em Jornalismo pela Escola Superior de Comunicação Social (ESCS). Em que altura percebeu que queria seguir jornalismo?
Foi durante o secundário porque senti que era uma forma de me manter ligada ao desporto, nomeadamente ao futebol, que é a modalidade que mais gosto. Como queria ter uma alternativa a jogar futebol, optei por seguir jornalismo mais direcionado para o ramo do desporto. Foi por saber que não podia ser jogadora profissional que decidi escolher esta alternativa e assim ter a hipótese, a nível profissional, de continuar a ir aos estádios, falar com os treinadores, jogadores e manter-me próxima do futebol.
Na sua tese de mestrado, analisou a “hegemonia do futebol no jornalismo desportivo”. O que ainda falta para as outras modalidades ganharem mais destaque por parte do jornalismo desportivo?
Falta interesse público. O futebol é o desporto que desperta mais interesse nas pessoas e foi isso que concluí na minha tese de mestrado. É sempre um dos principais protagonistas das primeiras páginas dos jornais, noticiários…é o desporto que acarreta mais pessoas e ao qual as pessoas mais ligam. Sendo assim, torna-se um pouco difícil as outras modalidades terem o mesmo espaço que o futebol, o que tem muito a ver com a mentalidade das pessoas. A comunicação retrata os temas de discussão de maior relevo para a sociedade e, sendo os portugueses muito virados para o futebol, é normal que haja menos espaço para as outras modalidades. Mesmo assim, já é dado algum destaque, mas só quando há feitos maiores por parte dos atletas portugueses. Acho que é difícil as outras modalidades terem um maior destaque do que aquele que têm neste momento, mas quem sabe as mentalidades comecem a mudar e as pessoas passem a dar mais importância a outros desportos que não o futebol.
“Nunca tive a ideia de seguir televisão”
Começou a escrever para o Bola na Rede, em agosto de 2014, maioritariamente sobre futebol. Como recorda a primeira experiência no jornalismo desportivo?
Foi gira. Estava na faculdade, ainda a tirar Sociologia, e nesse mesmo verão realizou-se o mundial. Escrevi um texto no Facebook sobre algumas seleções e alguns jogadores que me tinham despertado algum interesse e um rapaz mandou-me uma mensagem a perguntar se queria começar a escrever para o site. Respondi que sim. É um site importante, mas não é remunerado. É mais para ganhar experiência. Muitos dos jornalistas que hoje estão nos vários canais ou rádios começaram as suas carreiras no Bola na Rede. Foi uma experiência muito gratificante, no sentido de começar a desenvolver a minha capacidade de escrita, a ter algum contacto com a forma como a linguagem jornalística. É, sem dúvida, uma boa escola.
Estreou-se no jornalismo televisivo na ABolaTV, em maio de 2016. Sempre idealizou chegar ao mundo televisivo?
Nunca tive a ideia de seguir televisão. Foi algo que aconteceu de forma natural, o que também se deve ao facto de, no final do meu mestrado, ter a opção de estagiar e acabei por escolher ABolaTV porque me tinha sido aconselhada. É uma redação com pessoas muito jovens ainda a entrar no mundo do jornalismo. Acabei por ficar nesse estágio e, posteriormente, formalizaram o contrato de trabalho. Não posso dizer que ir para a televisão tenha sido um sonho desde sempre. Percebi que tinha algumas capacidades a nível de comunicação e foi assim que começou.
O sonho de chegar à Sport TV
Estreou-se na Sport TV, em março de 2019. Como surgiu a oportunidade de trabalhar nesta estação?
Nesse dia, estava a fazer diretos para ABolaTV, durante um Benfica vs Sporting e o chefe de redação da Sport TV ligou-me a dizer que sabia que estava em direto, mas queria perguntar-me se me queria reunir com eles. Tive uma reunião, já nas instalações da Sport TV, onde me disse que gostava muito do meu trabalho. Falámos sobre mim, sobre aquilo que eram os objetivos da Sport TV e foi este o primeiro contacto. Pelos vistos, já acompanhavam o meu trabalho, tiveram interesse em contratar-me e em duas semanas resolveu-se a situação. Saí da ABolaTV e fui para a Sport TV.
Sempre foi um objetivo chegar a uma das principais estações televisivas portuguesa especializada em desporto?
Sim, foi cumprido um sonho. A partir do momento em que entrei em jornalismo desportivo e comecei a ver que o meu caminho podia passar pela televisão, sempre tive o sonho de chegar à Sport TV. É o maior canal de desporto em Portugal e quando comecei a definir objetivos – trabalho muito por objetivos-, um deles era chegar à Sport TV. Era um sonho ir para lá trabalhar e, felizmente, consegui até mais cedo do que pensava.
É considerada um dos rostos da Sport TV, é repórter e está presente em narrações de jogos. Como descreve o seu dia a dia enquanto jornalista?
Os dias são muito diferentes. Tanto podem existir dias curtos como outros em que trabalhamos 12 a 14 horas. Nos mais calmos, fazemos “só” trabalho de redação e peças para os noticiários, mas os outros são completamente loucos, como os dias de exterior, mas também depende do trabalho a realizar. Quando vamos para os jogos fazer diretos, começamos de manhã e só acabamos à noite. Os diretos acontecem de hora a hora ou até mais do que um direto por hora. Se tivermos uma narração, temos que ter algum tempo para preparar o jogo desse dia e, geralmente, é no próprio dia porque não existe tempo para o fazer anteriormente. Se formos fazer reportagem de pista, começamos os diretos muito mais cedo e temos também que nos preparar para esses diretos. Temos muitas oscilações a nível daquilo que fazemos e um dos principais desafios é perceber que não é um mundo fácil.
Mulheres no mundo do desporto
Em novembro de 2020, numa flash interview, Jorge Jesus afirmou: “Não tenho a mesma opinião que você. Também é natural, porque não sabe o que é muita qualidade sobre futebol.” Como é que reagiu a este comentário do treinador do Benfica?
São comentários. Foi algo que aconteceu e que foi dito no calor do momento. No final dos jogos, quando as coisas não correm tão bem ou mesmo correndo bem, às vezes, os treinadores estão de cabeça quente e dizem coisas que lhes saem da cabeça. Sinceramente, hoje em dia, tento nem dar importância ao que aconteceu porque a verdade é que, depois disso, continuei a fazer flash interviews e reportagem de pista e comecei a fazer narrações. Foi uma opinião, mas se um dia Jorge Jesus quiser ir beber um café e falar sobre futebol podemos fazê-lo.
Sente que existe preconceito por uma mulher questionar o mundo do futebol?
Existe, mas está melhor. Estes momentos de estar a fazer narrações, reportagem de pista e algumas colegas também começarem a fazer noutros canais faz com que haja uma maior presença de mulheres, o que pode mudar a forma como as pessoas veem as coisas. Este preconceito é um caminho que ainda está longe de estar concluído porque ainda existe muito poucas mulheres no mundo do desporto. Estas oportunidades que vão surgindo para nós, que estamos a entrar agora no mundo do jornalismo direcionado para o desporto, contribui para que as coisas se tornem mais fáceis no futuro e que a própria mentalidade das pessoas se altere um pouco. É a tal história: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” Acho que a médio prazo, talvez daqui a duas gerações, a realidade já esteja diferente.
Um mês depois, em dezembro de 2020, fez história ao tornar-se a primeira mulher portuguesa a narrar um jogo de futebol da primeira Liga. Como é que esta oportunidade surgiu?
Já tinha realizado testes para narrações. Era algo que já estava pensado e programado pela Sport TV. Falaram comigo sobre essa possibilidade e obviamente disse que estava interessada porque era um dos meus objetivos. Houve a oportunidade de fazer a cobertura do jogo ao Jamor e foi um momento muito bom, para o qual trabalhei muito, mas também foi muito importante para todas as mulheres que querem seguir jornalismo desportivo. Como já referi, estas pequenas oportunidades acabam por ajudar na mudança de mentalidade. Daí considerar que esse momento também foi importante para que comecemos a entrar com mais força, ou seja, que deixe de ser notícia o facto de uma mulher fazer uma narração, que não seja o anormal e que se torne o normal. Daqui a um tempo, quando isto deixar de ser notícia, é quando vamos estar bem.
“Era complicado ir para a redação e ver que o mundo estava completamente de pernas para o ar”
Comparando com outros países, como por exemplo Espanha, em Portugal existe a tendência de os jornalistas não revelarem qual o clube que apoiam. Sente que a carreira de um jornalista pode ficar em causa por demonstrar qual o clube que apoia?
Em Portugal, existe muito pouca tolerância. As pessoas esquecem-se que, por exemplo no meu caso, comecei a exercer jornalismo aos 23 anos, mas até essa idade já acompanhava futebol. E se assim acontecia, era porque existia uma equipa de que gostava mais, além de gostar de futebol, e acho que as pessoas se esquecem disso. Antes de sermos jornalistas, fomos pessoas que não tinham a sua área profissional desenvolvida, mas o nosso gosto não nasce do nada. Por isso é que sou da opinião que se revelássemos o nosso clube poderíamos ser massacrados por isso. Todos podemos ter um clube e mesmo assim ser imparciais. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ao realizar o meu trabalho, não me “interessa” quem está a jogar, quero é que o trabalho saia o melhor possível. A mentalidade que existe noutros países, se calhar, é diferente. Mas sem dúvida que em Espanha há jornalistas super assumidos, por exemplo do Real Madrid, do Barcelona ou do Atlético de Madrid e que não têm nenhum problema em falar sobre o assunto. Em Portugal, não é possível porque, em praça pública, iríamos ser julgados, se bem que também não é muito importante as pessoas saberem de que clube é que somos. É olharem para o nosso trabalho e pensarem que estamos a ser jornalistas, a falar sobre as coisas com isenção, o que não quer dizer que não tenhamos os nossos próprios gostos, como qualquer outra pessoa.
Atualmente, existe a tendência de os clubes, maioritariamente os três grandes, se resguardarem a nível da informação que sai para a comunicação social. Sente que esta é uma das maiores dificuldades com que o jornalismo desportivo se depara?
Hoje em dia, temos muita dificuldade em chegar a alguns clubes. Desde que criaram os seus próprios órgãos de comunicação, são os clubes que realizam as entrevistas, reportagens e, às vezes, quando queremos chegar a um determinado jogador ou treinador, acaba por não ser possível porque não nos permitem. Existe essa barreira de querer fazer e não conseguir. Muitas das vezes, somos criticados por não fazer, mas as pessoas não sabem que nós tentamos chegar lá, só que simplesmente os clubes adotaram uma forma de estar muito protecionista dos seus jogadores e treinadores, que não compreendo. Podíamos trabalhar todos em prol de transmitir essas informações e dar a conhecer os jogadores e treinadores de outra forma, mas as informações acabam por ficar centradas nos próprios clubes. Existe receio que divulguemos algo que eles não gostem ou que os próprios jogadores digam alguma coisa inconveniente. É, sem dúvida, uma das maiores dificuldades que passamos hoje em dia.
A pandemia covid-19 teve um forte impacto, tanto no desporto como no jornalismo. Em que medida o seu trabalho mudou e como é que se adaptou a esta nova realidade?
Tivemos o campeonato parado dois meses e, durante esse período, continuámos a trabalhar e a ir à redação todos os dias. Houve uma altura em que fizemos horários faseados, tínhamos uma espécie de duas equipas: uma trabalhava mais de manhã e a outra mais à noite para não nos cruzarmos. Durante esses dois meses, em que não tivemos futebol, que é o nosso principal produto, tivemos que nos reinventar e pensar o que é que poderíamos dar às pessoas em casa. Curiosamente, foram os dois meses em que a Sport TV fez mais entrevistas. Quando o campeonato voltou, a Sport TV criou uma mini equipa, uma espécie de “bolha”, onde as pessoas eram destacadas para fazer a cobertura dos jogos, para não irmos todos ao mesmo tempo. Foi uma experiência muito diferente. Emocionalmente, foi um período muito difícil em que tivemos de fazer as coisas de maneira diferente. Era complicado ir para a redação e ver que o mundo estava completamente de pernas para o ar, ver as bancadas vazias, utilizar máscaras para fazer a cobertura dos jogos, termos de falar à distância com os treinadores e jogadores. Existia medo e receio de ir aos locais. Foi e continua a ser um período muito complicado porque o ambiente do futebol mudou e, hoje em dia, ainda é difícil de aceitar. Mas o jornalismo também é adaptação e reivindicação. Portanto, tentámos chegar às pessoas de uma forma diferente, mantendo as nossas crenças e a forma como acreditamos que temos que fazer as coisas.
Já tem um percurso firmado no jornalismo desportivo. Mas o que é que ainda lhe falta concretizar?
Quero continuar a firmar-me na Sport TV, continuar a fazer e a crescer nas narrações e a realizar reportagem de pista, que é algo de que gosto muito. Gostava de trabalhar numa entidade europeia como a UEFA ou a FIFA para ter uma experiência diferente fora de Portugal. Não digo que seja para já, mas gostava. Ainda tenho uma margem de progressão muito boa na Sport TV e preciso de continuar a criar essas oportunidades. Sei que ainda posso evoluir mais e, depois sim, quando estiver já mais firmada e também quando for mais madura profissionalmente, pensar noutros objetivos. Mas sem dúvida que gostava de um dia ter uma experiência dessas no estrangeiro.