Têm as portas abertas há décadas. Não são lojas, mas “casas” de afeto, tradição e paixão. É comércio tradicional o que ali se faz. Os produtos são variados e servidos à moda antiga. Mas, em pleno século XXI, quais são os desafios que enfrentam?
Alvorada: Casa de Cafés, ao serviço de quem procura qualidade
À entrada da Pontinha, o cheiro a café é inconfundível… O nome “Alvorada” não foi escolhido ao acaso. A aurora do dia faz-se especialmente naquele lugar, onde “o verdadeiro comércio tradicional existe há mais de 60 anos e está ao serviço de quem procura qualidade, simpatia e um bom café”, afirma Fernando Azevedo, gerente da loja Alvorada: Casa de Cafés.
O ar perspicaz e vivaço caracterizam-no e, aos 72 anos, continua a abrir a sua “casa” todos os dias pelas 8:00h da manhã. Para ele, continua a ser um privilégio receber os clientes a quem chama “família” e onde o atendimento continua a ser “personalizado e resulta de uma simpatia contagiante, não observada nos grandes centros comerciais”.
Todo o panorama mudou com o aparecimento dos hipermercados, mas Fernando afirma que “tentam fugir aos produtos que os hipermercados vendem”. O sucesso da loja mantém-se até ao dia de hoje pois “o café moído na hora, as mais de 60 qualidades de chás, a grande variedade de rebuçados vendidos avulso e a secção de vinhos nacionais e internacionais, como o whisky e os diversos licores” satisfazem as necessidades dos clientes, tornando-os fiéis ao café Alvorada. Ao recordar memórias passadas, o gerente afirma que “a loja vai na terceira geração, onde evidentemente os idosos vão partindo, os filhos e netos ficam e continuam a deslocar-se à sua loja como no tempo dos avós”. A missão da Alvorada é trabalhar com base na tradição, mantendo a qualidade e o atendimento personalizado desde as suas raízes.
Teresa e Nuno, colaboradores da loja, servem a Pontinha há mais de 30 anos. Juntos durante oito horas por dia, recebem os clientes e proporcionam-lhes, mais do que um bom café, um momento de convívio.
As montras da loja são elaboradas cuidadosamente por Teresa, que “já faz parte da mobília da casa”, como afirma Fernando em tom de brincadeira. A viagem começa por aí, as montras despertam a atenção dos que passam na rua que, por conseguinte, sentem vontade de entrar, de sentir o cheiro a café, de observar a mistura de cores e de provar a variedade de sabores que a loja oferece. À entrada da loja, encontra-se “a relíquia da casa”, um moinho de café vermelho com mais de 100 anos que enriquece a decoração. Fernando conta que, antigamente, o moinho passava o dia inteiro a moer o café que a loja Alvorada vendia para outras lojas e cafés. Afirma também que, nos dias de hoje, se “vende mais café puro, mas há tempos atrás a cevada era a preferida”.
O gerente pretende que o negócio tenha continuidade, afirmando que, para isso, é necessário “assumir enorme senso de responsabilidade, bem como estar sempre em cima do acontecimento para nunca perder as qualidades”. Estas palavras são ditas em tom de desânimo, ao afirmar que “a nova geração, os jovens nasceram na era dos hipermercados e centros comerciais e já não conhecem o verdadeiro comércio tradicional”.
Conta episódios das épocas festivas, como o Natal e a Páscoa, épocas em que a Alvorada ganha ainda mais vida. Nestas alturas, destaca-se a venda “das amêndoas, bombons e frutos secos, todos avulso” tal como nos anos 60.
Para Fernando, a memória mais antiga é também a mais triste: “com 19 anos, tive de deixar a loja durante um período de dois anos, quando parti para o ultramar para cumprir o serviço militar”. Confessa que grande parte da sua vida foi passada naquela “casa” e que “é uma paixão manter o comércio tradicional vivo em pleno século XXI”.
A concorrência é cada vez maior e o poder de compra da população menor, mas Fernando afirma que “o comércio tradicional é a alma de quem estima vender com tradição e paixão” e que, apesar “do comércio tradicional ter cada vez mais tendência para terminar, a Alvorada vai manter sempre o atendimento personalizado, a qualidade dos produtos e a tradição do bom café”, porque naquele lugar não se vendem somente produtos, mas sim iguarias, histórias, qualidade e afetos.
Loja Clarinha: Um misto de produtos e afetos que fazem a tradição
Localizada na freguesia de Casal de Cambra, a loja da Clarinha concebe o verdadeiro comércio tradicional há 40 anos. A imagem de marca está à porta de entrada, onde se encontra a placa “Vivenda Clarinha”, colada na parede preenchida pelo típico azulejo em tons castanhos e brancos, que caracterizam a antiguidade da loja.
A simpatia de Carla e Nylton, colaboradores há cinco e três anos, respetivamente, marcam o dia a dia da loja, que “já vai na segunda geração… O filho da Clarinha, Carlos, que curiosamente era o que não gostava de se deslocar à loja em criança, foi quem deu continuidade ao negócio”, conta Carla.
Carlos, o gerente, visita a loja todos os domingos de forma a perceber como se encontra o negócio. Os clientes deslocam-se até à loja da Clarinha para comprar “ração, fruta, legumes e uma coisa ou outra que esteja a faltar na dispensa”, afirma o gerente, mas o propósito da ida à Clarinha é também “o momento de convívio que se proporciona”.
“Os clientes são maioritariamente idosos, mas atendemos muitos jovens que vêm comprar as rações para os cães e gatos”, conta Nylton, enquanto aponta para o fundo da loja, onde se encontram uma variedade enorme de rações.
“Nylton, dá só uma olhadela pela loja que vou num instantinho com a Dona Lurdes ao multibanco ajudá-la…”, diz Carla já quase à porta de saída. Estes episódios demostram que, para além de produtos, a loja proporciona momentos de convívio e de entreajuda. Carla confirma que “a familiaridade e a convivência que temos com os clientes é um dos aspetos que me faz gostar tanto de trabalhar aqui”.
A localização da loja é um fator importante e que a faz manter-se viva. “É bastante conhecida pela zona e pelos arredores”, afirma Carla. O aparecimento dos hipermercados criou a necessidade de repensar toda a dinâmica do estabelecimento devido à forte concorrência. Afirma, perentoriamente, que “agora, o que vendemos mais são as rações, são elas que sustentam a loja, e a mercearia é apenas complementar, mas antigamente existia um equilíbrio entre ambas”. “As frutas, os legumes, as batatas, as especiarias e frutos secos avulso e o bacalhau eram os produtos escolhidos há anos.” Carla revela ainda que a venda é constante ao longo do ano, mas é na época da batata que o produto se esgota com tanta procura. “De dezembro a fevereiro, vendemos muita batata e de várias qualidades.” Em tom de brincadeira, diz: “agora está na moda a batata doce, mas não sou fã”.
A loja da Clarinha conta com quatro décadas de história, de memórias e de tradição, ao longo de duas gerações. Pode ser designada uma mercearia mista, uma loja de rações ou uma frutaria, mas para todos os que lá vão é mais do que isso: é uma casa de afetos e convívios que perdura no tempo, onde a confiança e a amizade enchem o espaço.