Em tempos de crise sanitária, decidiu reinventar-se para combater a pandemia e responder às novas dinâmicas do “ser”, enfrentando o medo e pondo mãos à obra. Chama-se Susana Claudino, tem 38 anos e é enfermeira no Hospital Garcia de Orta há 16. Dirige uma missão de voluntários para criam equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde.
Está na linha da frente no combate aos efeitos da pandemia. Consegue abstrair-se dessa função quando acaba o turno?
Agora mais ou menos, porque sinto que as coisas estão mais controladas. Já temos melhores condições, está tudo encaminhado e já consigo relaxar um bocadinho. Não me consegui abstrair, tinha de fazer algo para ajudar.
Como se sente perante a conjuntura atual? O que mudou no seu dia-a-dia e no dos profissionais de saúde que a acompanham?
Agora sinto-me mais tranquila, mas sempre insegura. No nosso dia-a-dia, mudou quase tudo, o sentimento de segurança, as mudanças a nível de serviço e a mobilidade de pessoal, os turnos que passaram a ser de 12 horas com mais intervalo de descanso. Em termos pessoais, mudou toda a rotina diária.
O que a motivou a investir na produção de equipamentos de proteção individual?
Vi que precisava de equipamento e, quando quis comprar, não havia em lado nenhum. Pensei de imediato que tinha de fazer algo. Cada pessoa responde de uma forma diferente a alturas de crise, e esta foi a forma que encontrei para responder a esta nova realidade. Até porque o sentimento era… vamos ficar todos infetados por falta de equipamento. Confesso que cheguei a tentar comprar papel vegetal para fazer máscaras.
É a primeira vez que faz equipamento de proteção?
Sim, porque nunca me tinha passado pela cabeça fazer algo fora da minha atividade profissional, era impensável. Quando me apercebi que era urgente equipar os profissionais, comecei a fazer contactos. Como fui voluntária na Cruz Vermelha, não tardou a chegar ajuda e os planos foram postos em prática.
Como conseguiu garantir mais mãos e braços para ajudarem nesta missão?
Comecei por pensar em arranjar equipas de voluntárias, umas de corte, outras de costura. Quando já tinha as equipas formadas, 35 voluntárias no total, foi pensar em como fazer chegar os materiais à casa das pessoas. Tive o apoio de várias empresas, do Eng. Gabriel e do treinador de futebol Silas que nos deu uma ajuda preciosa, contribuindo com 500 máscaras e contactando com empresas para nos ajudar com tudo o que pudessem. Para além disso, consegui também os intercomunicadores para as unidades Covid no HGO.
Tenho conhecimento que doou estes equipamentos ao HGO. O que a motivou a tal?
Confesso que, no início, desvalorizei a pandemia, até porque já tínhamos lidado com o ébola e a gripe A e já vivíamos a lidar com falta de ventiladores. A certa altura, caí em mim e vi que só tínhamos uma máscara para um turno inteiro, pensei que não iríamos morrer por causa do vírus mas, sim, porque não tínhamos armas para lutar contra ele. E a grande motivação prendeu-se com o facto de trabalhar ali e necessitar de arregaçar as mangas e fazer algo.
É uma missão para continuar? Porquê?
Sim, se for necessário. Entretanto, abrimos uma conta e ainda sobrou dinheiro para conseguirmos continuar, até porque tem de haver um reajuste. Na altura, as pessoas estavam em casa e agora já estão a trabalhar e a disponibilidade já não é a mesma. E porque temos que estar preparados para o que aí vem.
Esta missão transmite-nos esperança. Qual a mensagem que nos deixa?
Quando nos concentramos em algo, tudo pode acontecer e tudo acontece. Se nos focarmos no que queremos, tudo fluí e eu sou a prova disso. Fiz coisas que nunca pensei fazer e a equipa de voluntários igualmente. Foi um período de vida conturbado, em que houve um espírito de guerra e entreajuda, um grupo de pessoas que se uniu e que ficou com aquela sensação de fazer jus ao nosso hino: “Nobre Povo, Nação Valente”.
Como foi conjugar a vida familiar, profissional e a missão?
Foi uma conjuntura de situações que, no fundo, permitiu um empenho a 300%. Se tivesse de voltar a começar, começaria novamente. Porque esse espírito de entreajuda está em mim.
Que medidas tomou como prevenção para não contagiar os seus familiares?
Uma das medidas, e a que mais me custou, foi ficar sem ver os meus filhos durante um mês. Foi, sem dúvida, a medida mais drástica. Senti imensa falta deles, pois nunca passei um dia sem os ver. Adotei também todas as outras medidas, tais como tomar banho antes de sair do serviço, desinfetar o carro e pôr lixívia à porta.
O que pensa sobre a diminuição da afluência às urgências do HGO?
Não tenho noção dos números mas, sim, houve uma grande diminuição na afluência, até porque as pessoas tinham medo, mas também havia muitas situações que, na realidade, não eram urgências.
No que diz respeito a profissionais de saúde, estava o HGO preparado para o combate à pandemia?
Eu acho que ninguém estava preparado. Na altura, comecei a ver enfermeiros a usar sacos plásticos como máscaras. Nada nos preparou para isto e acredito que houve outras unidades em que correu melhor, mas ali estava complicado porque tínhamos que andar com a mesma máscara um turno inteiro. Ninguém tinha a noção do que iria acontecer.
O que pensa fazer quando a crise da pandemia passar?
Abraçar toda a gente, dar beijinhos a toda a gente (risos) e, até há um tempo atrás, era voltar a ver os meus filhos. Só quero que a minha vida volte ao normal e sou muito feliz com a vida que tenho.
No seu entender, acredita que teremos uma segunda vaga da pandemia?
Eu acredito que sim… eu queria dizer que não, mas com o desconfinamento é mais que provável que a segunda vaga irá chegar.
Há um provérbio que diz que “Quem não sabe, inventa”. Sentiu que, de repente, teria de inventar uma forma de ajudar os seus colegas de profissão?
Claro que sim, foi inventar e reinventar, porque a ambição era equipar o HGO e outras instituições de fora. Assustava-me ver as atitudes das pessoas, o desespero e o medo que todos sentimos. Saí de coração cheio e pensei que ainda há esperança na humanidade.
Perfil da entrevistada
“A esperança mora aqui”
Casada, mãe de dois filhos, Susana Claudino é natural e residente no conselho do Seixal. Estudou na Escola Secundária Alfredo dos Reis Silveira. Em 2004, licenciou-se em Enfermagem na Escola Superior de Saúde de Setúbal. No momento, exerce enfermagem no serviço de Ortotraumatologia, no Hospital Garcia de Orta. Em 2004, começou a exercer enfermagem no serviço de Urgência Geral do HGO e esteve neste serviço até 2014, passando depois para o serviço de Ortotraumatologia.
Mulher dinâmica e sempre disposta a ajudar o próximo, é reconhecida como uma “guerreira e com um coração de ouro” pelos amigos e familiares. De uma extrema simpatia e empatia, no que diz respeito aos seres humanos e suas vivências. É incapaz de ver alguém na rua a precisar de ajuda e não ajudar.
Adora a sua profissão e até a desempenharia como voluntária, mas admite que existem injustiças no SNS no que diz respeito aos ordenados dos enfermeiros, porque colegas como psicólogos, terapeutas e outros ganham mais que um enfermeiro.
Não gosta de ver notícias para não ficar assustada – prefere ver o Canal Panda – (risos) e afirma que, na unidade onde trabalha, os utentes que vêm um determinado canal de notícias morrem todos de enfarte (risos).
Já socorreu imensas pessoas e isso dá-lhe um imensurável prazer, sendo que o mais difícil é lidar com os familiares de utentes que faleceram.
Sente prazer em comer, em estar com a família. Momentos marcantes? Quando conheceu o marido e se apaixonou à primeira vista, o casamento e o nascimento dos filhos. “Tenho a vida toda cheia de coisas marcantes”, afirma.
Susana e Paulo decidiram casar quando já tinham uma filha. Foi, sem dúvida, um momento marcante aquele em que os dois saíram de um turno noturno no HGO, dirigiram-se à Conservatória com a sua filha e casaram. Só anos mais tarde é que fizeram a boda.