A Outra Face da Lua não é uma loja como as outras. Aqui, não há uma coleção nova todos os meses ou 20 cópias da mesma peça em 30 padrões diferentes. A regra é ser único e diferente. Nesta loja slow fashion, cada roupa é merecedora de uma nova vida.
10:00h da manhã, Rua da Assunção. Está na hora de abrir as portas de vidro de uma das lojas mais vintage de Lisboa. Já se ouve música indie rock que cria um ambiente surreal, como se se tivesse viajado no tempo. Os tons castanhos neutros das paredes e mobília contrastam com as cores psicadélicas das camisas dos anos ‘80 e ‘90. De um baú caem velhos lenços acetinados com padrões multicor. Na janela, palavras a dourado “#Ethical” e “#slowfashion”.
“Slow fashion está ao lado de slow cooking. Primeiro, entrou o fast food, todo o processo muito rápido para fazer comida, e depois o fast fashion, todo o processo muito rápido para fazer roupa. O slow fashion é o oposto, vem dizer que a forma rápida como as coisas são feitas hoje não é uma forma positiva. Faz-nos andar mais rápido do que o nosso metabolismo, o que eleva os nossos níveis de stress. Consumimos rapidamente, e a cultura slow vem daí. De tentar parar o fast”, explica Carla Patrícia Belchior, com um sorriso confiante. Com cabelo escuro onde sobressai uma flor de tecido roxo e os ombros cobertos com um xaile antigo, é a dona d’A Outra Face da Lua. “É uma espécie de cultura que se está a fomentar neste momento, dada a necessidade que existe de combater os efeitos nocivos do fast.”
A expressão slow fashion (moda lenta, em português, fazendo referência ao tempo que demora a produzir roupa de maneira sustentável) foi criada em 2007 por Kate Fletcher, no The Ecologist, mas os movimentos slow já existiam muito antes, desde os anos ‘80. O conceito tem por base a ideia que a roupa deve ser feita eticamente, sem sofrimento, quer nosso, quer do planeta. “É um contramovimento ao consumismo exagerado, ao fast fashion, ao consumo único. O slow fashion vem contradizer essa ideologia que, cada vez mais, prejudica o nosso planeta”, diz Francisco Tavares Moura, que veste camisa larga com um padrão colorido dos anos ‘80. Trabalha na loja e, agora, pendura roupa acabadinha de chegar.
O consumo consciente
Para João Galiza, o grisalho sócio de Carla Belchior, slow fashion “é o momento em que uma pessoa não compra uma peça de roupa só porque gosta. Pensa um bocadinho nela, sabe de onde é que ela vem, sabe quem é que a fez”. Parar e pensar é a ideia principal. Perguntar quem fez aquela roupa de marca que está na montra antes de a comprar. “Na verdade, quando vamos às lojas de marca como a Zara, a Bershka, a Pull and Bear, há sempre peças e peças e peças a aparecer muito rapidamente. E depois há alguém, que não sabemos quem é, que faz essas peças: são as crianças, a exploração, o trabalho infantil”, conta Anastasia Esik, jovem descontraída de top vermelho, a gerente da loja.
Segundo um artigo do The Guardian em parceria com a UNICEF, 11% das crianças do mundo são vítimas de exploração infantil, e a maior parte destas trabalha para as grandes empresas de moda da Europa e EUA. Quando os trabalhadores não são crianças, trabalham em más condições, sob constante ameaça de morte, como se consegue ver no documentário The True Cost (2015) de Andrew Morgan.
Para além do sofrimento dos trabalhadores, a roupa que usamos faz “sofrer” o planeta: segundo um estudo feito em 2017 pela Fundação Ellen Macarthur, um camião de têxteis é deitado fora a cada segundo. As peças são deixadas a decompor lentamente, enquanto a sua produção emite gases de efeito estufa para a camada de ozono e contribui em grande escala para a quantidade de plástico nos oceanos.
Em lojas slow fashion como A Outra Face da Lua, em vez de as roupas serem adicionadas a esse camião, encontram uma nova vida. Cada peça é reutilizada, arranjada e vendida à pessoa que, eventualmente, a encontrará no meio de outros milhares de peças que também serão escolhidas um dia por alguém que as queira.
Lojas com caras
Quando se entra na Outra Face da Lua, é-se imediatamente bem-vindo. Não há sorrisos forçados, frases programadas, uniformes ou um look padronizado que cada funcionário deve ter. Cada uma das pessoas que ajudam a encontrar aquela roupa perfeita é exatamente isso: uma pessoa.
“É importante existirem mais lojas de pessoas e não de empresas. É sempre bom sabermos onde estamos a meter o nosso dinheiro. Ir a um sítio, saber que o dono está lá, que as pessoas não são meros números e são tratadas condignamente. Sabermos onde estamos a apostar o nosso dinheiro, quem tem um bom projeto”, afirma Carla Belchior, em tom ativista. “Quando uma pessoa quer optar por um consumo consciente, deve optar acima de tudo por olhar para as pessoas que estão ao balcão e saber se estão lá os donos. Por isso é que apoio todas as lojas de segunda mão que quiserem abrir, desde que tenham caras por detrás.”
De facto, as lojas de roupa mais conhecidas: Zara, Bershka, Pull and Bear, Massimo Dutti, Stradivarius, pertencem todas à mesma empresa, a Inditex, que se situa na Galiza, em Espanha. O dono de todas estas marcas é Amancio Ortega, cuja fortuna é estimada em 62,7 biliões de euros.
“Pessoalmente, prefiro comprar em lojas onde conheço o dono, comprar numa feira onde estou a dar o dinheiro ao feirante.” Carla explica que muitas destas grandes empresas “roubam” dinheiro aos pequenos negócios e a muitas minorias que sobrevivem à base da venda de têxteis: “Há uns anos, quando criaram a ASAE, fez-se uma perseguição à comunidade cigana porque vendiam roupa de contrafação, e perderam o trabalho. Existe essa perseguição. No entanto, se formos a certas lojas outlet, vendem essas marcas e também são contrafação. Vamos a essas lojas porque estão mais bem arranjadas, e nem sabemos quem são os donos.”
É movimento ou é moda?
Apesar de incentivar a compra de roupa em produtores por conta própria, o movimento slow fashion aparece mais ligado às lojas vintage e de segunda mão. Será possível ser slow fashion sem aderir ao estilo vintage? Tem mais valor a moda do que o movimento?
“É mais uma conscientização do mundo. Tenho amigas que antes achavam que era só uma forma de não gastar dinheiro. Sempre fui assim, mesmo antes do movimento. Deve-se incentivar, através das redes sociais, as pessoas perceberem que não precisam necessariamente do mesmo modelo de roupa em todas as cores. Basta uma peça boa, que se vai usar de diversas maneiras. É uma conscientização, é uma coisa que se faz uma vez e acaba-se fazendo sempre”, conta Carla Oliveira dos Santos, uma jovem de sorriso aberto, funcionária da Outra Face da Lua. Ao contrário dos outros funcionários, usa roupas simples e modernas.
“Tudo o que não é produção em massa, tudo o que não é produção para seguir as tendências da moda, as que saem todos os anos, é na verdade o vintage, a «moda» em segunda mão. As pessoas conseguem adaptar as roupas ao seu próprio estilo, mas não existe mais produção. São peças únicas, só existem com um tamanho específico e um padrão específico.” Anastasia explica este fator de exclusividade ligado tanto ao slow fashion como ao estilo vintage. Carla Oliveira expande a ideia: “Acredito que slow fashion está também ligado ao vintage. Até mesmo à exclusividade de ter uma peça que ninguém mais vai ter. Tu vais num vintage, viajas, compras uma peça e vai ser muito difícil encontrar outra igual. No fast fashion não, vais à praia com um fato de banho de marca e corre-se o risco de ver, no mesmo verão, 50 meninas usando o mesmo.”
Por ser moda não significa que não possa também ser um movimento, como diz Francisco Moura: “O vintage é o aproveitamento de roupa antiga, portanto, estamos a reciclar a roupa, entra aí o conceito do slow fashion.”
Slow fashion em Portugal
“Infelizmente, ainda não há tanta procura de segunda mão em Portugal”, lamenta a gerente. De facto, no que toca a Portugal, os pequenos negócios estão mais centrados nas feiras, a maioria das lojas de segunda mão vintage estão em Lisboa, e muito poucas consideram-se slow fashion. No entanto, o movimento está a crescer, especialmente à conta das redes sociais.
Carla Oliveira acredita que “Portugal está muito à frente. Temos lojas boas, temos a Feira da Ladra, que existe há anos, e as pessoas consomem cada vez mais em segunda mão. Antes era de gente mais velha, mas agora os jovens também compram”. Francisco pensa que deviam existir mais lojas slow fashion, “não só para mudar um pouco a mentalidade que vem com a globalização da fast fashion, mas para fazer de Portugal um sítio mais sustentável”.