Desalento, falta de perspetivas e saudade, muita saudade. Expressões que dominam o discurso de proprietários e gerentes de pequenos cafés de bairro que, em comum, partilham a localização junto a escolas em Lisboa.
A entrada da Escola Passos Manuel está despida de alunos. O silêncio domina o ar. Não passa nenhum carro na rua e o pequeno café que lá existe, O Estudante, está às moscas. Perto da Escola Pedro Nunes, o café 1500 não conta com a presença de um único jovem. À frente do portão da Escola Maria Amália Vaz de Carvalho, rapazes e raparigas agrupam-se, mas ninguém olha para o café do Sr. Martins. No sufoco que uma máscara traz e no medo que paira sobre a cidade, os adolescentes assistem às aulas e vão para casa, sem pausas no caminho.
A 18 de maio de 2020, as aulas presenciais voltaram para os alunos que teriam exames nacionais. Foi uma decisão que levou a outras, nomeadamente à reabertura destes estabelecimentos que se localizam perto de escolas. A esperança de uma recuperação financeira, pela espectativa de que os jovens haviam de querer voltar aos velhos hábitos e que iriam beber um café à dona Fátima ou comer uma baguete do Sr. Martins, desapareceu, rapidamente, das suas cabeças.
Localizados estrategicamente para atrair um público jovem, quando a proposta de almoço ou lanche na escola não é a mais apelativa, apresentam na carta sugestões rápidas, saborosas e acessíveis para esse efeito. Estes snack-bares costumavam ser alvo de grande procura, até que a chegada do inimigo invisível a Portugal os fez fechar as portas durante dois meses. Tempo que se traduziu em prejuízos devastadores, que agora não estão a ser compensados pela falta de clientes.
A maioria dos estudantes que tem de sair de casa para ir ter aulas, com as regras impostas pela Direção-Geral de Saúde (DGS), tenta, agora, evitar frequentar cafés ou restaurantes. Na realidade, muitos, com os hábitos adotados durante o período de quarentena, já não sentem necessidade de comer fora de casa. Estão rendidos a propostas como as da Uber Eats ou Glovo, segundo dizem vários jovens que estão nesta situação.
O Estudante: “Saudades desse ambiente estudantil agradável”
Ao contrário do que seria habitual, a parte exterior d’O Estudante não tem jovens à conversa. Não há música, não há o fumo do cigarro de quem fuma, porque ninguém está por perto. Miguel Vilar, de 17 anos, aluno de Línguas e Humanidades na Escola Passos Manuel conta que a última vez que frequentou o local foi na segunda semana de Março. “Desde que as aulas recomeçaram ainda não fui por questões de segurança. Tenho muito receio e incertezas em comer fora por causa da Covid-19. Por mais cuidado que se tenha, não se consegue ter a certeza se os locais de restauração estão bem limpos e desinfetados. Adorava o ambiente d’O Estudante. A dona Fátima, gerente do estabelecimento, é bastante simpática e aqueles que o frequentavam também. Havia um convívio característico. Tenho saudades desse ambiente estudantil agradável”, conta Miguel, nostálgico.
Ao se entrar n’O Estudante estão evidenciados na parede todo o tipo de alertas da DGS. Existe uma barra vermelha para que os pedidos sejam feitos com o distanciamento necessário. Quando se olha para a dona Fátima, nota-se a falta de brilho nos olhos. A máscara que tapa parte do rosto abafa-lhe a respiração e fá-la falar baixinho. Não há clientes e as horas de trabalho custam a passar. Uma frustração que impera no seu subconsciente. Tem de pensar no que fará aos bolos e folhados que não forem comprados hoje. Depara-se constantemente com a caixa vazia. “Sou apaixonada por isto, porque adoro lidar com meninos. Não faz sentido estar aqui sem os alunos, pois são eles que dão graça a este lugar. Por mais que, às vezes, me tenha chateado com alguns, a maioria era sempre impecável e adorava a ligação que havia entre nós. Os que já conheciam bem O Estudante confiavam em mim e sentiam conforto em cá vir. Havia dias que eram bastante puxados e que faziam fila para comer daqui, mas tudo era melhor do que isto. Sinceramente, não sei o que vai ser do futuro do café”, diz Fátima em tom de desabafo.
Sexta feira, dia 6 de junho, as aulas voltaram a ser suspensas. Há dois casos confirmados nesta escola, o que faz com que todos os colegas tenham de manter o distanciamento social e fazer uma quarentena. O vírus levou a melhor de novo. Como vai conseguir O Estudante sobreviver a isto?
1500: “Quase a ir para o Júlio de Matos”
É hora de almoço de uma quarta-feira. O sol brilha e uma breve brisa no ar permite que o dia esteja agradável. O espectável para um dia de semana, ao meio dia, era que o café 1500 estivesse a abarrotar de estudantes da Pedro Nunes. Mas não é isso que se observa agora. Há cadeiras que nem sequer foram colocadas nas mesas. De um espaço amplo, poucas mesas estão a ser ocupadas, sendo que nenhuma é no interior do estabelecimento.
Das pessoas que estão na esplanada, três são funcionárias da escola que aproveitaram a sua hora de almoço para petiscar e fumar um cigarro. Demonstram estar descontraídas e sem receios. Paula, auxiliar na Escola Pedro Nunes, explica com convicção: “estou tranquila em vir aqui para beber um café e espairecer porque, na verdade, com a realidade que estamos a viver, existem perigos muito maiores a que estamos sujeitos. Acho que ninguém se tem lembrado disto, mas quando vamos ao supermercado, independentemente da proteção e do limite de pessoas, o risco é bastante maior. Contudo, as pessoas não deixam de ir fazer compras, pois não? A vida tem que continuar”.
Basílio Lopes, o gerente do café, conta como tem sido a adaptação com este inimigo à solta. Explica que, com o tempo de sobra que têm, a desinfeção do estabelecimento tem sido uma tarefa fácil. Mas está desiludido com a prestação do Governo. “Disseram que iam disponibilizar o álcool-gel e que ajudavam, mas passado oito dias já não há dinheiro para ninguém. Tudo aquilo que prometeram, falharam. É profundamente aborrecido e deprimente olhar para as coisas como estão, passar um dia e vender dois a três almoços. Estou quase a ir para o Júlio de Matos de tanta frustração. Se fosse o dono, tenho a certeza que já teria fechado”, comenta Basílio. Anabela, funcionária há mais de 30 anos do 1500, que está a seu lado, concorda com todas as afirmações.
Sr. Martins: “Os melhores clientes que tive foram os jovens”
Na Rua Rodrigo da Fonseca, o cenário é um pouco diferente. Há alunos à porta da Escola Maria Amália Vaz de Carvalho. Estes estão agrupados conforme as suas amizades e em grande número. Quase parece um dia normal de aulas para estes estudantes, mas basta olhar para o outro lado da rua para se perceber que não. O Sr. Martins, o estabelecimento querido dos alunos conhecido pelas suas famosas baguetes, está deserto.
Quando se entra no snack-bar é imediata a sensação de estar num ambiente pesado. Luís Martins, o proprietário, está sentado, com os cotovelos na mesa e as mãos na cara, a olhar para nenhuma direção em específico com uma expressão triste e vazia. Diz que a sua tristeza se deve à falta de adesão das pessoas nesta reabertura. “Mesmo com o bar da escola fechado, as pessoas optam por não vir cá. Vem um professor por dia tomar um café e algumas funcionárias da escola. No que toca aos miúdos, hoje, vendi dois cafés e uma merenda, fiz 2,45€ com eles. Uma coisa que é impensável, numa escola com mil alunos. A vida nesta rua é ganha pela escola e pela presença dos jovens. Nas férias de verão isto morre completamente, mas isso era sempre compensado com o lucro que se obtinha ao longo do ano letivo. A escola quase que parece um museu agora e toda esta zona que a rodeia perdeu a sua essência natural”, explica Luís Martins, preocupado.
Com uma perda de lucro de cerca de 98%, Luís Martins enfrenta, possivelmente, a fase mais difícil da sua carreira. Já não tira ordenado há três meses para poder pagar à funcionária Margarida e tem de lidar com múltiplas despesas que não desaparecem. Sente-se impotente com a realidade que o atingiu e a todo o País. Só lhe resta esperar e recorrer à memória. Relembrar os momentos felizes que passou no seu café é a única forma de se aguentar. Mas será o suficiente? “Estou cá há quatro anos e, de certa forma, já me tinha apegado a alguns dos miúdos e eles a mim. Parte-me o coração ver que, às vezes, já nem os reconheço por estarem de máscara. Houve momentos em que ex-alunos, quando já estavam a tirar os seus mestrados, vinham cá dizer-me um ‘olá’ e até agora alguns estudantes brasileiros me mandam mensagens do Brasil! É uma confiança e uma relação que se criam. Posso dizer que em 45 anos de serviço – porque, comecei a trabalhar aos dez anos -, o melhor público que tive foram os jovens. Não sei se alguma vez as coisas vão voltar a ser o que eram e se este café ainda estará aberto caso isso aconteça”, diz Luís Martins emocionado e com uma certa revolta.
Nestes cafés, como em tantos outros, ficam pessoas com futuros incertos, trabalhos instáveis e a esperança de que um dia tudo volte a ser normal.