Oredemoinho das imagens não é coisa apenas do nosso tempo, caro leitor. Recuemos vinte e três séculos e repare-se no modo como elas irrompem nos textos apocalípticos de “Daniel”, chegando quase a atropelar o relato dos acontecimentos: “Considerava eu, na minha visão nocturna, que os quatro ventos do céu se precipitaram sobre o grande mar. Surgiram do mar quatro grandes animais, diferentes uns dos outros” (7,2-3). Esses animais fabulosos são, logo a seguir, descritos um a um: o primeiro “era semelhante a um leão, mas tinha asas de águia”, o segundo era “semelhante a um urso”; o terceiro era parecido a “uma pantera que tinha sobre o dorso quatro asas de ave” e, por fim, o mais “aterrador”, tinha “enormes dentes de ferro (…) e dez chifres” (7,4-8)[*].
Ao lerem-se hoje estas palavras, fica-se a meio caminho entre aquela sensação de burlesco (tipo King Kong no cimo do Empire State Building com Fay Wray na palma da mão) e a possibilidade de tomar as alegorias a sério. Devo dizer, caro leitor, que já o fiz há uns tempos, quando me pus a desfibrilar um doutoramento. Uma década antes, precisamente, passou-se uma coisa na minha vida que me faz sempre evocar esta ‘terra de ninguém’ entre o burlesco e a mais severa das gravidades. Eu conto.
Lembro-me que o dia ia avançado – umas três grolsch com gargalo de pirolito e um gorduroso frikandel enchiam as horas –, quando ouvi o telefone. Era a televisão (holandesa). No dia seguinte, tive que me levantar cedíssimo e lá voei com os operadores de câmara e o ensonado jornalista que fazia um dos programas de actualidade mais vistos na altura (esqueci-me completamente do nome dele). Ali ia eu como tradutor escolhido à pressa, depois de várias tentativas, em Hilversum, para encontrar alguém que não deixasse fugir aquele encontro com a “História” que a AVRO (o nome do canal) tinha subitamente descoberto.
Só soube do que se tratava, quando nos alojámos numa das salas privadas do aeroporto Charles de Gaulle. O entrevistado que, umas horas depois, apareceu na minha frente era um alto responsável da polícia de S. Paulo que estava em discreto trânsito a caminho da Alemanha.
Era um homem alto e magro. Uma seta de marfim com os pés espetados na terra e umas sibilantes que fariam vibrar as raízes dos coqueiros. O cinto apertado dividia-lhe o corpo em dois como se fosse uma almofada de penas atada ao meio por um fio de nylon. Andava com os pés virados para fora e o cabelo liso de risca ao meio levantava no ar uma caligrafia eléctrica. Era um hímen expressivo que avançava com passos curtos, moldando tudo com palavra líquida e aconchegada. Sorria com vapores de sapo de boca larga (e, sim, sim, parecia-se realmente com o personagem de Daniel com os seus “enormes dentes de ferro”). Na sua maleta metalizada, levava nem mais nem menos do que os presumíveis ossos do nazi Josef Mengele que iriam ser sujeitos a testes de DNA. Lembro-me bem do contraste entre o calvinismo austero do jornalista holandês e o humor desbragado e despropositado do brasileiro. Nunca mais soube nada acerca desta história que se passou há mais de três décadas.
Os acasos, caro leitor, têm sempre unhas de gel: destapam o que parece tapado. Por vezes parecem feitos à medida das nossas memórias mais bizarras. Foi o que me aconteceu, quando, há dias, li uma notícia que dava como certo que os ossos de Mengele tinham passado a ser usados no Brasil em aulas de medicina forense. A iniciativa teria pertencido ao director do Departamento de Medicina Legal da Universidade de S. Paulo, Daniel Romero Muñoz, que, em meados dos anos oitenta, liderou a equipa que identificou o cadáver de Mengele.
Como é sabido, Mengele foi um dos facínoras nazis que, logo após a II Grande Guerra Mundial, conseguiu fugir para Argentina e depois para o Paraguai, tendo-se fixado no Brasil em 1960. Segundo rezam as crónicas, morreu afogado na praia de Bertioga em 1979 e foi enterrado em S. Paulo com um nome falso. Passados poucos anos, devido à intercepção de uma carta do casal alemão que enterrou Mengele com o nome de Wolfgang Gerhard, a verdade veio ao de cima. Daí que, em 1985, o cadáver tivesse sido finalmente exumado e, depois de longa pesquisa, a equipa multinacional que na altura se formou chegou à conclusão que se tratava mesmo do corpo de Mengele.
Foi no decorrer destas perícias que eu voei de Amesterdão para Paris e servi de tradutor à AVRO. Houve, no entanto, caro leitor, um pequeno acontecimento que fez desse dia um dia King Kong.
Quando já nos despedíamos nos corredores do aeroporto, fiquei a sós por momentos com o polícia que, com o seu ar afilado de seta de marfim, me murmurou aos ouvidos por duas vezes: “Isto são ossos de cachorro, isto são ossos de cachorro”. E de seguida rematou: “Os verdadeiros já voaram, já voaram”. Vi-o depois a desaparecer no meio da multidão, ia de costas, cada vez mais pequeno, e imitava com a mão a forma de um avião. O cinto apertado dividia-lhe o corpo em várias escarpas, os pés a serpearem mistério e a cabeça a esfumar-se até se confundir com uma seta, ou com uma lâmina afiada.
Na narrativa de Daniel, a vitória do “filho do homem” sobre as quatro “bestas” funcionava como alegoria para os males terríveis do mundo que, de modo iconográfico, se iam assim expiando. No desfecho da narrativa que pôs o polícia fuinha de S. Paulo a expelir sibilantes no Charles de Gaulle, a alegoria gestual soube-me a fel. Não saberei bem dizer porquê.
Talvez porque conseguir, ao mesmo tempo, dizer a verdade e confundir os sentidos é atracar em ‘terra de ninguém’ (nesse limbo entre o King Kong burlesco e a gravidade da circunstância). Foi aí, em terreno instável, que esta minha história se ficou. Sem âncora alguma. Até porque, para o bem ou para o mal, o apocalipse não passa disso mesmo: de uma visão. E uma visão é coisa que existe por si, sem precisar seja do que for que a explique. O autor anónimo dos textos de Daniel sabia-o bem.