Sinopse:
“Joana nasceu condenada aos infortúnios da vida. A vila pobre, o pai ausente, a mãe entregue ao álcool, o irmão deficiente. Apesar de ter sido agraciada com inteligência e beleza, as qualidades da rapariga parecem não ser suficientes para que ela reme contra a corrente.
Numa terra de ninguém, Joana luta para ser gente: resiliente como uma flor que teima em brotar entre as pedras da calçada.
O romance de estreia de Pedro Rodrigues é sobre a dureza da vida e a importância de se manter viva a esperança por uma primavera que acaba sempre por chegar, mesmo depois do mais rigoroso inverno.”
Crítica:
Lendo a sinopse antes de abrir o livro “Deve Ser Primavera Algures” e seduzidos por uma capa colorida e jovial, é natural pensarmos que no seu interior haja uma história de esperança, a de uma rapariga que tenta combater as adversidades do mundo de maneira corajosa, libertando-se do seu passado e tornando-se ‘melhor pessoa’. Não duvido que tenha sido essa também a intenção do autor, Pedro Rodrigues, famoso escritor no Instagram e blogger. Após a leitura, pode dizer-se que essa intenção não passou disso mesmo.
Logo na primeira página, deparamo-nos com um caso de violência doméstica que nos apanha de surpresa e nos choca. Conhecemos Maria, e descobrimos que ela é a vítima deste crime. No entanto, não nos é transmitida qualquer personalidade ou aprofundado qualquer sentimento, pelo que acabamos por, simplesmente, lamentar a situação. Esta incapacidade de mostrar humanidade e sentimento com as personagens, infelizmente, continua pelo resto do livro. O autor passa a ideia de que um passado traumático é suficiente para desenvolver uma personagem e o leitor ‘sentir’ por ela, quando isso não é verdade. Serve-se de situações horríveis pelas quais ninguém devia passar para fingir profundidade e tentar arrancar-nos algumas lágrimas, mas a verdade é que, até ao fim da história, não ficamos completamente entrosados com nenhuma das personagens que a habitam.
A personagem principal, Joana, filha de Maria, começa por ser ridiculamente perfeita, para contrastar com o seu irmão deficiente. Na primeira parte da história, “Infância”, ainda pensamos estar perante uma rapariga com um monólogo interior algo interessante, ideia que infelizmente vai desaparecendo à medida que a história avança. Esta personagem tinha potencial para ser consistente se, na segunda parte, “Adolescência”, não se tornasse no que os adultos pensam que é ser adolescente: uma rapariga influenciável, que se preocupa com o que os outros pensam e está focada em rapazes, chegando até a contrariar a sua suposta inteligência com muitas das suas ações, sem uma explicação credível ou que, ao menos, trouxesse complexidade à construção da personagem. Sente-se que Joana está apenas a ser arrastada para onde a história quer que ela vá, sendo completamente passiva, sem sequer conseguir resolver os seus próprios conflitos.
De facto, as mulheres desta história deixam muito a desejar, tanto Joana como Maria. A principal característica de Maria é ser uma cristã dedicada – embora, a meio do livro, haja uma reviravolta na personagem que até poderia fazer sentido se fosse mais aprofundada, mas como não sentimos suficientemente a dor da mãe, acabamos por não estabelecer uma ligação com ela. Temos também Theodora e uma história paralela, que ocorre ao mesmo tempo que a de Joana e Maria. Theodora é uma mulher negra que trabalha numa casa de prostituição. Esta é a personagem mais conseguida no que toca a complexidade, apesar das relações dela com outras personagens estarem longe de serem profundas.
Outras personagens são Manuel, o irmão de Joana, que tem dificuldades cognitivas. Apesar de existir uma tentativa de tocar no tema dos problemas mentais, este acaba por não ficar desenvolvido… tal como a personagem. Temos também Dom Sasha, a personagem mais divertida, dono da casa de prostituição onde trabalha Theodora, conseguindo ser estranho e real ao mesmo tempo, e Florindo, um homem rico e intelectual, cliente do negócio de Dom Sasha. Se era intenção do autor gostarmos de Florindo, falhou. É a personagem com a qual menos se simpatiza, apesar de ser ele quem profere as palavras mais belas e amorosas do livro. No entanto, a história pinta-o como um homem perfeito, um herói, acabando por eliminar qualquer humanidade que a personagem poderia ter tido. A sua lógica pura prova-se mais inquietante do que intelectual, e não tem muita compatibilidade nas suas relações românticas.
Apesar de estar aquém de ter personagens notáveis, a obra tem uma história interessante que em algumas partes nos consegue agarrar e tenta tocar em temas importantes, como a prostituição, a violência doméstica e as famílias abusivas, mesmo não tratando estes temas com a sensibilidade e complexidade que mereciam. Quando encontramos, a meio da história, um mistério, ficamos curiosos, a tentar descobrir quem é o assassino, mas infelizmente o mistério não se prolonga por muitas páginas pelo que não acumula tensão suficiente e acabamos desiludidos com o resultado.
O problema principal desta obra é o facto de ser muito curta. Parece um primeiro rascunho de uma história que poderia ser ótima, fosse ela mais trabalhada, mais descritiva (nunca se consegue imaginar uma imagem certa de Maria, Joana ou Manuel!), aprofundando e desenvolvendo mais as personagens, bem como o mistério – a parte mais interessante do livro. As páginas deste livro não são suficientes para contar a história que o autor queria, e isso acaba por afetar todos os elementos da narrativa, bem como a suposta mensagem de esperança que é passada de uma maneira sofrível.
Independentemente de todas as suas falhas, a verdade é que o livro consegue captar a nossa atenção até ao fim. Não recomendo a obra a pessoas sensíveis ou a pessoas que procurem uma história bem desenvolvida, que desperte sentimentos e reflexões. É mais uma leitura rápida, uma leitura de Verão, um livro de praia. Mas é uma história com imenso potencial para ser melhor e passar uma mensagem importante.
Se gostaste de “Deve Ser Primavera Algures”, também gostarás de “O Fim da Inocência” de Francisco Salgueiro.