No início da década de 90, quando estava a terminar o meu doutoramento, descobri em Washington DC um livro que tinha na capa uma figura com escamas na perna e um único olho no ventre*. Tratava-se da terrível e ao mesmo tempo sublime imagem do monstro de Ravenna.
Há várias fontes relativas ao aparecimento deste monstro. Uma delas é a interessante descrição do farmacêutico florentino Luca Landucci que, no seu diário de 1512, dá conta do monstro de Ravenna como um facto real. Como se a personagem de carne e osso tivesse nascido na cidade das duas pombas e vagueasse perigosamente entre o Veneto e as cidades da Emília Romana.
A autora do livro, Otavia Niccoli, deu o exemplo desta imagem como prova da rápida circulação de figurações deste tipo na época (em duas semanas apenas terá chegado de Ravenna a Valladolid). As guerras itálicas – envolvendo espanhóis e franceses – e o pano de fundo da colisão otomano-cristã eram território fértil para a utilização (dir-se-ia hoje em dia mediática) desta cativante literatura profética, muita dela carregada de imagens com funções de aviso, dissimulação, criação de alarme e, também, naturalmente, de catarse.
Há alguns anos, em viagem, fiz propositadamente um desvio para visitar a cidade de Ravenna. Confesso que, ao contrário de muitas outras cidades da região, Ravenna sempre me motivou apenas por causa da singularíssima imagem do monstro. Curiosamente, ao percorrer as ruas, não encontrei a imagem do monstro de Ravenna em nenhum símbolo, ícone ou logotipo do município ou das empresas locais. Estranhei imenso. No posto turismo, uma senhora (academicamente formada) e que sabia imenso da história local nunca tinha ouvido falar da imagem do monstro. Pasmei. Era domingo e, para além da variadíssima literatura sobre a cidade que enchia as prateleiras do posto de turismo, eu apenas dispunha de um recurso para poder provar à senhora que o monstro de Ravenna tinha efectivamente existido: o Google. Ao fim de dois cliques, claro, a senhora maravilhou-se.
Pena tive eu de não poder ter feito o mesmo, há um mês, aos editores do New York Times. Ter-lhes-ia mostrado o monstro de Ravenna e, depois, lia-lhes ao ouvido este breve trecho – “Vi um carneiro que estava ali de pé com dois chifres compridos e o último a nascer era o mais comprido dos dois. O carneiro dava marradas para ocidente, para o norte e para o sul.”. Após a leitura, referia-lhes a fonte (Antigo Testamento – Daniel,8) e explicava que o carneiro correspondia ao reino Meda-Persa que, logo a seguir na narrativa, contracena com um “bode” identificado com Alexandre-o-magno. Este tipo de relatos, continuaria eu de modo paciente, era normalíssimo no mundo antigo e medieval: animais simulando impérios, bestialidades denotando submissões, enfim, monstros exagerados – como o de Ravenna – dando a ver dominações.
Mesmo sem ponderar o fundamental, o uso da liberdade, com um mínimo de conhecimento destas nossas genealogias simbólicas, jamais os editores do The New York Times teriam tomado a decisão de acabar com a publicação de ‘cartoons’ na sua edição internacional. Atribuir a significação literal de anti-semitismo a uma crítica política óbvia, baseada numa tradição fabular que vem de tão longe, como aconteceu com o agora já famoso cartoon de António (António Moreira Antunes), é, sem dúvida alguma, um acto de assustadora cegueira.
Quando foi anunciada a proibição, o editor James Bennet reafirmou que o NYT continuaria “a investir em formatos de jornalismo opinativo, incluindo jornalismo visual” que expressasse “nuance, complexidade e vozes fortes a partir de uma diversidade de perspectivas”. Por mais que esta cegueira se ponha a pensar em voz alta, atirando areia e correcção aos olhos dos leitores, é óbvio que ela funciona bem mais por pressão do que pelo entendimento de um legado de liberdade e de pluralidade, sem esquecer a ignorância simbólica de que adora dar mostras.
Ignorar, obliterar ou esquecer a presença de símbolos é coisa triste. Mesmo numa cidade como Ravenna que já morreu por duas vezes (uma vez no ano mil e outra vez, no século XVI, devido à mortandade imposta pelos franceses), a ignorância dos símbolos não deixa de ser um curiosíssimo sinal destes tempos de alojamento local, mochilas e consumo tecnológico de douradinhos. A perda de memória colectiva, aliada a vórtices primários, a pressões e a correcções de todo o tipo dá nisto: a disneylandização do mundo que se entrega de mão beijada à intolerância dos pobres de espírito. Talvez assim consigam desnavegar com o capitão igloo até ao reino dos céus. Putacuspariu.