É na Avenida Luísa Todi, artéria maior da cidade de Setúbal, que se encontra um dos mais prestigiados mercados de peixe do mundo. Inaugurado em 1876, tem sofrido muitas alterações (e alguns percalços), o que não muda é a diversidade e a qualidade dos produtos. E o sorriso e força dos comerciantes.
São 10:21h de quinta-feira e o Mercado do Livramento está pronto para acolher as suas caras mais ilustres. Carlos Carmo é uma delas. Enquanto prepara uma pata roxa – peixe da família do tubarão –, o comerciante confirma que a vivência no mercado é alegre, com um “ambiente familiar” e relembra como a vida o trouxe até cá. Ele que sempre esteve ligado ao mar, através da Marinha Mercante. Quando a antiga Companhia Portuguesa Transportes Marítimos foi vendida, e como já tinha por hábito ajudar a esposa, começou também a acompanhar regularmente com a filha mais velha. “Em 1983, dormia à porta do mercado, na camioneta, para irmos às lotas buscar o peixe”, relembra.
Carlos apercebe-se de que está um homem encostado à sua banca, de braços cruzados, a observá-lo. É Hélder Lopes, 45 anos, que afirma ter os maiores peixes do mercado, entre eles espadarte e atum. Tal como Carlos, também as suas raízes estão no mar. O avô era pescador. A mãe foi trabalhadora na última fábrica de conservas de Setúbal, chamada Vasco da Gama.
Faz 25 anos que cá está. Quando voltou da tropa, começou a trabalhar no negócio da família e acabou por ficar. “Esta vida é importante para mim”, suspira, de forma nostálgica, garantindo que também o seu nome vem de uma história ligada ao mar. Retira o telemóvel do bolso, abre a galeria, e mostra uma fotografia de um barco antigo na marina de Setúbal. “Esta era a embarcação de pesca da minha família, com o nome ‘Hélder Miguel’. Foi comprada pelo meu tio há 46 anos. A minha mãe engravidou e o meu pai disse: se for menino vai ter o nome do barco!” revela, emocionado.
Hélder não fala apenas do passado e dá conta da evolução em termos tecnológicos. Enquanto prepara a faca para cortar um bife de atum, mostra uma aplicação capaz de monitorizar as embarcações através de um satélite, informando os utilizadores da sua localização. Só ainda não tem acesso ao tipo de peixe que apanham.
Numa banca mais perto das frutas está Fernando Carmo, 67 anos, irmão de Carlos. Antigo eletricista, deixou a sua antiga profissão há 35 anos, pois “naquele tempo o mercado rendia mais”. A mulher ajuda-o, de vez em quando, mas quer que ele deixe a praça. Apesar de ter a sua reforma e “a vida feita”, ainda não está preparado para deixar o trabalho. Sobretudo pelas pessoas.
Não há boa terra, sem bom lavrador
Um metro à frente dos comerciantes de peixe encontra-se a banca de Maria Celeste, cheia de cor e de turistas. Maria confessa, com o seu sotaque alentejano, que “apesar das épocas passarem e as necessidades mudarem”, o mercado não perdeu a sua “essência”. Comerciante de fruta, legumes e azeitonas, conta com um sorriso que está no mercado há 41 anos. “Isto era negócio dos meus pais. Tinha outro emprego, mas ele morreu novo e tive de ajudar a minha mãe.”
A maioria dos negociantes de fruta e legumes têm a sua própria horta. Isto permite que tragam alimentos frescos, vindos das raízes da terra, sem adição de químicos. No entanto, devido à globalização e consequente alteração do clima, muitos produtos são importados. Ainda assim, Maria Celeste não se deixa afetar. Cultiva e traz os produtos frescos da sua “adorável quinta”.
Anabela Julião, da banca à frente, aponta para as frutas coloridas assumindo que uma são suas e outras importadas. “Para estar aqui, não posso estar na horta” brinca, garantindo, ainda assim, que quase toda a mercadoria é oriunda de produtores da Península de Setúbal, graças ao “microclima muito favorável” da região. O que não consegue na zona do Sado, tem de recorrer à região de Lisboa. E só depois aos importadores.
Maria Celeste admite que os supermercados “roubaram” muita clientela. “Quando era jovem vendíamos muito, carregávamos as carrinhas cheias”, se bem que, também no caso dela, o lucro já não seja a maior das preocupações. “Já não quero trabalhar muito”, diz, entre risos. Reformada, vê a sua banca como uma forma de esquivar-se de casa e conviver. Anabela corrobora que as vendas já estiveram muito melhores. “Subiu bastante o preço de tudo, dado a escassez de produtos. A alteração do clima é fatal. Logo, as nossas margens são pequeninas.”
Hélder Lopes, que agora lava o chão do seu espaço, concorda com as colegas de mercado e acrescenta: “isto é como se fosse um jogo; nem todos os dias se vende e nem sempre há lucro”. À frente da banca de Hélder, Fernando ouve e complementa. “É complicado. A vida de peixeiro era muito melhor na década de 80. As vendas começaram a cair, em 2008, após a crise.”
Independentemente dos obstáculos, os comerciantes sabem o valor que esta praça – expressão mais utilizada pelos setubalenses – tem para os locais. E não só. O Mercado do Livramento foi considerado, em 2015, pelo jornal americano USA Today, como um dos mais conceituados do mundo. Um orgulho estampado nas paredes do edifício.
“A parede tombou”
Estas palavras soaram pelas ruas de Setúbal, em fevereiro de 2012. Durante a obra de extensão da área de mercadoria da praça, uma parede ruiu e uma tragédia inesperada aconteceu. Carlos Carmo assegura que “a parede não tinha segurança alguma. Para esta aguentar a vibração das obras, colocaram um painel de esferovite. De seguida, meteram uns barrotes de madeira, para que não saltasse. Esses estavam a fazer pressão à mesma”. Tudo aconteceu numa sexta-feira. “Lembro-me disto tão bem”, recorda o comerciante. “Houve uma tragédia, uma desgraça, arranjaram mil e um argumentos e a culpa não foi de ninguém. A culpa foi dos que morreram”, lamenta, enquanto olha para a nova parede de azulejos. Os responsáveis da obra de requalificação foram absolvidos e dirigiram-se para África… Não fugiram, mas foram embora, para não haver represálias…” Carlos suspende a fala. A queda da parede lateral do mercado ainda está bem presente. Matou cinco operários.