O som do violino vinha de longe. Como se estivesses noutro lugar a tocá-lo e não onde realmente te encontravas. Acontecia-te muitas vezes esse migrar dos pulmões para fora da respiração, ou esse migrar da expressão mais íntima para fora do rosto. Existias tanto do outro lado da praça, como no fio melódico das moscas que assaltavam o vidro da janela, junto à mesa onde os teus pais te tinham levado para almoçar. O restaurante Irmãos Unidos tinha dois pisos e, na parede da frente, o quadro de Almada Negreiros dominava os olhos fechados com que o tempo insistia em parar.
A curva semelhante à de uma parábola definia o rosto de Fernando Pessoa e sugeria ser uma máscara colada à testa, por baixo do chapéu de abas. A luz alaranjada cobria todo o corpo por trás, ao mesmo tempo que transpunha o tampo da mesa em forma de traço descontínuo. O cenário geométrico desafiava tudo o resto a dançar: a caneta, a chávena de café, a revista Orfeu 2, o cigarro, o lenço, o papillon e o pequeno bigode. A recta directriz com que cingia o olhar através dos óculos, duas lentes elípticas embaciadas pelo torpor, quem sabe se pela flecha vazia de um dardo.
Ficaste impressionado com a vulnerabilidade do mistério, era como se ele gravitasse à volta daquelas cores e parecia até fácil agarrá-lo com a ponta dos dedos. Coisa egípcia, pensaste, pois vagueavas ainda com o talismã dos faraós na tua memória, matéria recente das aulas de história no liceu.
Três anos mais tarde, em Janeiro de 1970, o quadro, executado em Bicesse no mês e no ano em que tu nasceste, viria a ser vendido no leilão do recheio do café-restaurante por mil trezentos e cinquenta contos. Algum tempo depois, Sarah Affonso revelou que a obra fora pintada no quintal, num sítio onde a luz coada pela ramagem era quase perfeita. Após mais de um século de história, os Irmãos Unidos, presentes na literatura de Camilo ou de Fialho de Almeida, passaram tristemente o testemunho à Camisaria Moderna que teve assim a possibilidade de alargar as suas instalações no Rossio. Continuaste a lutar com o bife e com o ovo estrelado, enquanto afastavas as moscas do prato e sempre a escutar os sons agudos que provinham afinal do olhar do poeta que nunca mais te largou o cinturão invisível.
Fernando Pessoa transformou o excessivo peso do passado numa metafísica feita de nuvens de bom tempo. Essa meia evaporação da história fez com que uma certa quantidade de mitos, espalhados em todas as direcções, se transformassem em metáforas de leitura universal. Um tal reequilíbrio não cabia na rigidez do antigo regime, mas floresceu uns cinquenta anos depois da morte do poeta que não foi apenas um poeta, mas um modo de nos lermos e de nos entendermos a nós próprios. A heteronímia serviu para mostrar que as soluções avançam por muitos carris ao mesmo tempo e que a estação de chegada, tal como todos os pontos de partida, são sempre espaços improváveis. Vivemos numa encruzilhada de proposições, em suma.
Lembras-te do encontro, na Primavera de 1982, com August Willemsen, um dos grandes pioneiros das traduções de Pessoa, que teve lugar na biblioteca da universidade de Amesterdão, na altura a meia dúzia de metros da praça de Waterloo e da casa de Rembrandt (quando os turistas ainda rareavam). Comparando a Holanda com Portugal, ele disse-te uma frase que dificilmente esquecerás: “Nós naufragámos mas fomos apenas comerciantes, enquanto vocês naufragaram em Pessoa e com isso descobriram o mundo todo de uma só vez.”.
Ofereceste-lhe o único livro que publicaras até então, intitulado O Fio de Prumo. Ele viu o título, sorriu, deu uma volta às estantes de poesia brasileira e apareceu-te com um livro homónimo na mão. Respiraste fundo, pois um homónimo não é propriamente um heterónimo. E concluíste que apenas existe aprendizagem, se se armar uma feira que consiga preencher a alma inteira. No fundo, foi o que Almada conseguiu com aquele quadro pintado ao ar livre em finais de Agosto de 1954: espelhar através do olhar de Fernando Pessoa um outro mundo diante daquele que nos é habitual, mas com um fio de prumo secreto a ligá-los (para que pudéssemos ver de fora aquilo que, ao mesmo tempo, somos e não somos, tal como a flecha e o dardo se entreolham sem quaisquer limites).
(texto extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)