A maioria dos casos de anorexia nervosa atinge o sexo feminino. O desejo de perder peso guia-as para um ciclo de degradação física e psicológica do qual, apesar de tudo, é possível sair.
Têm um medo excessivo de engordar que, associado a uma imagem distorcida do seu corpo, as leva a entrar num processo onde, entre comer cada vez menos e atingir a total rejeição alimentar, o tempo parece praticamente não existir. A anorexia nervosa é uma perturbação do comportamento alimentar que atinge, em 95% dos casos, o sexo feminino. Para a pedopsiquiatra Maria de Lurdes Candeias, “pode ser consequência da educação e de características particulares do género feminino que o expõe com maior facilidade a esta perturbação”. A imagem corporal e o desejo pelo ideal de beleza parecem influenciar os comportamentos alimentares, encaminhando jovens adolescentes aos serviços clínicos em diferentes estágios de anorexia nervosa. Os sintomas são vários e, no entender da especialista, “muitos estão apenas ao alcance do olhar de um médico”. Contudo, há sinais de alerta como “a seleção alimentar em jovens que, muito cedo, começam a excluir certos alimentos das refeições, a rápida perda de peso ou ainda o surgimento de sintomas de desidratação”.
“São comuns os casos em adolescentes que sofreram uma perda familiar recente ou um divórcio parental” — Maria de Lurdes Candeias, pedopsiquiatra
A anorexia nervosa é uma das perturbações do comportamento alimentar que tem vindo a aumentar nas sociedades ocidentais, segundo revelam investigadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em Portugal, já é a terceira doença crónica mais frequente na adolescência. Fundadora da consulta para adolescentes com anorexia e bulimia nervosas do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, Maria de Lurdes Candeias vinca que “não há um padrão-tipo para identificar quem sofre ou pode vir a sofrer desta perturbação”. Para a pedopsiquiatra, “apenas é possível identificar antecedentes comuns na esfera alimentar de alguns pacientes como jovens que tiveram muitos vómitos, gastroenterites ou algumas situações de contacto com determinadas viroses no decorrer da infância”. Além disso, acrescenta, “são comuns os casos desta perturbação em adolescentes que sofreram uma perda familiar recentemente, uma mudança de escola ou situações em que os pais se divorciaram”. A pedopsiquiatra ressalva que “apesar de se tratar de jovens inteligentes, perfecionistas e muito trabalhadoras, são também extremamente vulneráveis às apreciações que dizem respeito à sua imagem”. Por outro lado, excluem-se das estatísticas “adolescentes de classes muito baixas por nem sequer chegarem a ir aos serviços de saúde”, refere a médica.
Na primeira pessoa
No início da adolescência, aos 12 anos, Inês sofreu de anorexia nervosa. A caminho do 7º ano, era boa aluna a Português e Filosofia. Os números não eram o seu forte, embora nunca tivesse tido uma negativa ou sequer deixado que isso a preocupasse. Era uma adolescente que não excluía qualquer alimento. “Comia de tudo, até doces e outras coisas que não fazem tão bem ao corpo e que me deixavam com um pouco de peso a mais”, confessa.
“Tornei-me agressiva. Pensei acabar comigo” — Inês
Os sintomas da perturbação surgiram quando começou a deixar de comer. Um dos truques era desviar grande parte das suas refeições para o cão que calculadamente sentava ao seu lado, debaixo da mesa. “Não queria estar com pessoas. Isolava-me em casa e era lá que tudo me irritava. Tornei-me agressiva com os meus pais. Pensei acabar comigo.” Em seis meses, com 1,58m de altura, Inês desceu aos 37,5 kg, que a colocaram num nível de magreza severa na escala do índice de massa corporal (IMC). Os pais de Inês acreditavam que ela comia o que eles lhe davam, nunca suspeitaram que a filha pudesse sofrer de anorexia nervosa. Quando os primeiros sintomas físicos começaram a aparecer, a mãe de Inês pensava que algo se podia estar a passar com o estômago da filha e levou-a, obrigada, a uma nutricionista que lhe diagnosticou anorexia nervosa.
“Não há cura, apenas um processo em que são dadas bases para se saber lidar com isso” — Inês
Hoje, com 23 anos, revela que ainda não sabe ao certo o que a encaminhou para esses comportamentos, mas reconhece que a ânsia pela atenção dos pais que apenas davam por si “quando acontecia algo de mal” foi, talvez, o maior impulso. Do tratamento ficou o rigor na alimentação, comer sempre “às horas mais indicadas e sempre no mesmo horário”. Durante dois anos, foi acompanhada por especialistas em psicoterapia e nutrição, mas admite que “não há cura, apenas um processo em que são dadas bases para se saber lidar com isso na vida”.
Massificação, ‘a inimiga’
Inês faz parte da última geração que nasceu ainda sem a emancipação do universo digital. Um fenómeno que tem vindo a preocupar a comunidade científica. O alerta é dado por Carolina Reis, enfermeira a especializar-se em nutrição clínica que alia a sua atividade principal à de blogger na área da nutrição humana: “A facilidade com que se perpetuam estereótipos, de forma cada vez mais portátil, através de redes sociais, que servem de meio para a difusão de informação, nem sempre é fidedigna.” A técnica aponta ser “cada vez mais difícil distinguir um bom de um mau conselho alimentar na internet, onde pessoas com elevados índices de alcance social dão informações totalmente descabidas e desatualizadas”.
A força da internet conduziu a nutrição para uma “autêntica moda” — Carolina Reis, enfermeira e blogger
Segundo a revista Forbes, os 10 maiores “food influencers” norte-americanos têm, juntos, um alcance de mais de 43 milhões de pessoas cuja média de idades se situa entre os 16 e os 20 anos. Um número que não chega para traduzir o total de pessoas expostas na internet à propagação da ideia de que a sua imagem traduz inteira e quase exclusivamente o seu valor. Para Carolina Reis, o problema coloca-se quando “muitas jovens passam a olhar para si como não sendo suficientes tornando a alimentação num escape”. A enfermeira reconhece que “a força da internet conduziu a nutrição para uma autêntica moda”. Para lutar contra esta ideia, a profissional de saúde opta por, através da influência que tem junto dos seus 11 mil seguidores, passar a ideia de que “a alimentação não deve ser extremista nem seguir modas, devendo ser entendida como algo sustentável (para o organismo) e prazeroso”. A pressão social, considera Maria de Lurdes Candeias, funciona como impulsionador deste tipo de problemas do comportamento alimentar, como a anorexia ou a bulimia nervosas. “Estas perturbações surgem como reações do organismo a situações traumáticas ou que o organismo entende como tal”, explica.
Um tratamento de forças
Pelas fortes marcas físicas e emocionais causadas pela anorexia nervosa torna-se difícil para os pais acompanharem os filhos em todo o processo sem procurar ajuda especializada. Quando situações como estas forem identificadas, a pedopsiquiatra aconselha a recorrer de imediato a ajuda especializada: “O primeiro passo a dar é recorrer a um médico que pode mesmo ser um pediatra se se tratar de uma criança a sofrer da perturbação. Daí, o mais provável é ser encaminhado para um psiquiatra, muitas vezes acompanhado de uma equipa multidisciplinar, onde o paciente pode ser seguido também por psicólogos e nutricionistas.”
“Deixar evoluir a anorexia nervosa sem tratamento pode ter consequências dramáticas” — Maria de Lurdes Candeias, pedopsiquiatra
As consequências de deixar evoluir o desenvolvimento da anorexia nervosa sem tratamento “são dramáticas”, adverte a pedopsiquiatra. Maria de Lurdes Candeias lembra que “antigamente, casos como estes levavam muitas vezes à morte por falência do organismo”. Segundo a especialista, “a evolução da perturbação sem acompanhamento médico pode, hoje, levar a osteoporoses, anemias, problemas cardíacos, falta de nutrientes e consequente desidratação. Em mulheres adultas, com casos prolongados de anorexia nervosa, existe ainda a possibilidade de quebra do ciclo de ovulação, incapacitando-as de engravidar”. A psiquiatra especializada em infância e adolescência alerta que “o isolamento encaminha o doente a entrar num grande sofrimento e, em termos psíquicos, a um alto nível de depressão por sentir que não se é amado”. Inês contribui para que a percentagem de casos de anorexia nervosa tratados com sucesso esteja a aumentar, mostrando que é possível sair do ciclo de degradação física e psicológica imposto pela perturbação. O processo de acompanhamento médico a que foi submetida tornou-a “mais forte”, admite. Hoje, a concluir o período de estágio curricular, está a um passo de terminar o curso de Psicologia pelo qual decidiu ingressar com a vontade de retirar jovens da mesma situação em que esteve no passado.