Campeão europeu e mundial de jiu-jitsu, Nelton Pontes é um dos nomes incontornável da modalidade da nível internacional. Em entrevista ao UALMedia, o atleta aborda o seu percurso numa modalidade pouco reconhecida no país, mas também a importância que o desporto teve na sua vida vida pessoal.
Em entrevistas anteriores, afirmou ser proveniente de uma família com poucos recursos e que isso poderia ter resultado num desvio de conduta da sua parte. De que formas foi tentado por maus caminhos?
Aqui na zona [Amora] existia muito tráfico. Alguns grupos praticavam também assaltos. Era jovem e aliciavam-me para entrar no grupo deles. Poderia ganhar algum dinheiro rápido e fácil. Contudo, sempre me mantive de pé atrás nessas situações, também pelos conselhos que ouvia em casa, mas não foi fácil. Na altura, tinha muitas dificuldades financeiras. E eu tentei. Tentei part-times, biscates e não me aceitavam. Sou uma pessoa de pele negra, o que tornava tudo mais difícil. Se não fossem as artes marciais, acabaria por embalar com eles. O jiu-jitsu mostrou-me que era possível ser melhor do que aquilo que queriam que eu fosse.
A modalidade surgiu na sua vida a convite de um professor, que o abordou na rua, para que realizasse um treino experimental. O que o levou a querer continuar após um primeiro treino?
Vou ser muito sincero. Apanhei (risos). E não gostei de apanhar. Estava habituado a dar e acontece que apanhei de alguém mais pequeno e magrinho que eu. Fiquei com aquilo na cabeça. Fez-me pensar o dia e a noite toda. Percebi que o jiu-jitsu era uma arte muito eficaz. Foram os sentimentos de frustração e impotência, mas também uma sensação de admiração pela arte que me fizeram voltar. O físico conta, mas não é a arma principal e percebi isso naquele dia.
Portanto, no jiu-jitsu quem ganha não é por obrigação mais forte?
Exatamente. A essência do jiu-jitsu é extremamente psicológica. Envolvemos muitas capacidades mentais e essa é a chave da luta. Existem muitos atletas fortes fisicamente, com resistência muscular, rápidos e ágeis. O que marca a diferença é a capacidade cerebral na luta e o jiu-jitsu desenvolve muito essa parte cognitiva.
Referiu que estava habituado a bater e não propriamente a apanhar. O jiu-jitsu acalmou esse lado mais agressivo?
Sim, sem dúvida. No tempo da escola, sofria de racismo e isso despertava-me para lutar. Chamavam-me de preto e mandavam-me para a minha terra. Respondia com violência. Era uma reação defensiva sobre algo que não aceitava. Se aceitasse de forma passiva, eles nunca parariam. Só depois de andarmos à porrada é que as bocas paravam. Infelizmente, tive de tomar algumas atitudes mais agressivas para que as pessoas pudessem respeitar o meu tom de pele. Depois de começar a praticar jiu-jitsu, houve um controlo maior sobre as minhas emoções. Comecei a ponderar mais. Optava por utilizar o vocabulário e não as mãos.
Declarou ter sofrido racismo durante a infância. Qual é a sua perspectiva sobre o tema?
Naquela altura, o racismo era mais evidente, as pessoas tinham orgulho de exporem que eram racistas. Hoje, o racismo é camuflado. Passei por coisas complicadas devido ao racismo. Com o tempo, percebi que o racismo não se combate com violência. De nada me valia ser igual a eles. Hoje, já não sofro tanto de racismo, talvez pela minha postura e presença. Mas ele existe. Ninguém assume que o é, mas depois não querem as filhas a namorar com pretos, não vemos pessoas negras como patentes máximas das grandes lojas e poderia continuar com exemplos equivalentes. As pessoas já não são óbvias, porque a sociedade se tornou mais crítica.
Já sentiu racismo no jiu-jitsu?
Nunca. O mundo das artes marciais é diferente. Há desportos em que das bancadas se ouvem ofensas aos atletas e treinadores, mesmo entre os competidores, por vezes, existe desrespeito. Nas artes marciais temos princípios muito vincados. O jiu-jitsu engloba todas as culturas, etnias e todos os tons de pele. No ‘tatami’ somos todos iguais.
Nunca senti racismo no jiu-jitsu, mas senti em países para os quais fui competir. Na Alemanha, passei por uma situação muito triste. Estava na fila de uma pastelaria e quando chegou a minha vez, a senhora que estava a atender ignorou-me completamente e atendeu a pessoa que estava atrás de mim. Foi chato. Naquele momento, a minha consciência disse-me que não valia a pena permanecer ali ou debater com aquela pessoa. Retirei-me e fui a outro sítio.
O jiu-jitsu é uma modalidade dispendiosa. Os kimonos são caros, as grandes competições são pagas e algumas, inclusive, internacionais, o que força a realização de viagens. Para alguém que sonha com a competição e não detém grandes recursos monetários é lúcido acreditar que fará nome nesta área?
Fiz um primeiro treino e a minha vontade era continuar. Conversei com o meu professor. Expliquei-lhe que não tinha condições para pagar a mensalidade da academia e comprar um kimono. O mestre reconheceu o meu potencial e, por isso, autorizou-me a frequentar a academia de forma gratuita e emprestou-me um kimono. Havia apenas uma contrapartida, eu não podia faltar aos treinos. Comecei a ter o desejo de competir. Não tinha capital financeiro suficiente. Por isso, tive de ir trabalhar. Consegui juntar um dinheiro e comprei um kimono. Venci todos os campeonatos nacionais e o próximo passo era o estrangeiro. Aqueles que me eram mais próximos, sugeriram que enviasse os vídeos das minhas lutas para algumas empresas a pedir patrocínios. Obtive o apoio de algumas. Tinha amigos que estavam bem na vida e também me forneceram algum suporte. Foi-me possível, desse modo, começar a viajar. Isto no meu caso. O conselho que posso dar àqueles que se deparam com essa realidade, é que o jiu-jitsu é uma formação para a vida. É um investimento com retorno. Eu vejo jovens a comprar ténis de 150 euros. Com telemóveis de 1000 euros. Jovens que saem à noite e gastam 100 euros. Investimentos momentâneos. O investimento nas artes marciais oferece um retorno vital. Os benefícios que damos à sociedade são imensos. Os nossos jovens deixam de estar nas ruas a fumar ‘ganzas’ ou a beber, para treinarem. O jiu-jitsu é muito mais do que meter um kimono e andar à porrada, as pessoas é que não têm essa noção. O jiu-jitsu não é caro. O preço que cobra é o justo.
Foi o primeiro português Campeão da Europa e Campeão do Mundo no jiu-jitsu. Sente que este feito foi devidamente reconhecido por parte dos meios de comunicação social e órgãos estatais?
Não esperava nada dos meios de comunicação, muito menos do estado. O jiu-jitsu não é um desporto rei. Em Portugal, o único desporto rei é o futebol. É o único que valorizam, o único desporto que movimenta massas. Tudo se resume a dinheiro e o desporto que dá mais dinheiro é aquele que tem mais visibilidade. Sabia que não seria mediático. Não obtive reconhecimento pelos meus feitos. Fui o primeiro português a alcançar inúmeras coisas. Representei Portugal em muitos países, que nem sabiam onde era Portugal. Conheciam apenas o Cristiano Ronaldo. Algumas revistas e jornais falaram do meu trabalho e fui à televisão, mas para aquilo que alcancei soube a pouco. É o normal em Portugal.
Como é que alguém que está habituado a ganhar lida com a derrota?
Ganhar é extremamente viciante. Quanto mais ganhas, mais queres ganhar. Não percebo a derrota como tal. Aceito-a como uma oportunidade de aprender. Quando perdi, refleti sobre o meu erro, ergui a cabeça, continuei a treinar, procurei evolução e voltei para a competição mais forte. É também assim que lido com os problemas da vida. O jiu-jitsu prepara-me para o mundo lá fora de forma paralela. Lutar e ganhar é fácil, difícil é voltar depois da derrota. Aprendemos muito mais com a derrota. A vida está cheia delas, se não soubermos aprender com elas, não vamos evoluir.
Enquanto atleta já conquistou muito. Anulando os prémios e medalhas que recebeu, o que ganhou com o jiu-jitsu?
O jiu-jitsu contribuiu muito para o meu desenvolvimento pessoal. Tive a oportunidade de viajar imenso e conhecer novas culturas. Isso ajudou-me a mudar a minha visão sobre o mundo. Cresci muito, a nível pessoal, financeiro e emocional. Se não fosse o jiu-jitsu, possivelmente estaria preso, morto, ou num trabalho infeliz a fazer aquilo de que não gosto. Só vejo saídas muito más sem esta arte na minha vida.