Lidas ou ditas, as relações entre ficção e realidade são relações entre palavras. Palavras que semeiam imagens. Imagens que colamos a factos em polvorosa. Factos que, na maior parte das vezes, já perderam o seu entrecho próprio. Só no precipício do imediato essas relações fazem soar as suas turbinas. Talvez por isso mesmo, sejam turbulentas, difíceis de aplanar, de conter, de absorver. Ir a Verona visitar Julieta (“God knows when we shall meet again!”*) ou percorrer um romance e nele entrever uma espécie de ‘self-fulfilling prophecy’ são modos de viver esse tipo de relações como se elas irradiassem (ou forjassem) um fantasma de que não nos conseguimos dissociar.
Entre ficção e realidade fluem fantasmas, mas esses fantasmas somos nós próprios. Olho para a porta do pátio e a sua efígie reaparece-me no lóbulo occipital, embora encadeada com outras portas – e com mil ciladas espontâneas cheias de mais e mais portas – que rememoro e conjecturo. A certa altura, o que vejo são maçanetas e batentes em forma de gnomo que não cabem nas palavras (como tudo o que é fundamental na vida). Não saberei nunca onde comecei a ficcionar e a deixar de ver ou onde comecei a ver e a deixar de ficcionar. Uma flutuação sem fim que fez estalar a intenção inicial que me levara até à porta do pátio para onde ainda não parei de olhar (Romeo: “I dreamt my lady came and found me dead”*).
Por vezes, não é fácil entender que ‘ter os pés em terra’ não é uma coisa muito diferente de ‘andar sempre no ar’. Caracterizar a realidade é um pas de deux que tende amiúde a esconder o seu rosto inevitavelmente ficcional. Ao falarmos de realidade, falamos de uma foz tumultuosa onde desaguam episódios mutáveis, dando-nos a ilusão de movimento contínuo. Um cortejo com cordão umbilical, pois o mundo e todos nós vagueamos juntos e somos parte também dessa foz em constante deriva tectónica (e onde não há separação entre sujeitos e objectos).
Derivar é rastrear todo o hemisfério com uma mão de carne e osso, de um lado, e com uma outra mão que é a desse fantasma que também sou eu, do outro. Se por acaso decidisse silenciar a palavra “realidade” e a palavra “ficção”, o que restaria era apenas a água da foz tumultuosa, bravia e revolta. Apesar de tudo isso, subo ao estrado com ligeireza, continuo a dar as minhas aulas e sei perfeitamente quem sou e que papel estou a desempenhar, ainda que, ao mesmo tempo, esteja a realmente voar. Realizo e ficciono: duas asas do mesmo voo.
Todos voamos enquanto desempenhamos. Ser actor não é coisa do teatro. Se, um dia, os humanos se deram ao trabalho de inventar o teatro (Derrick de Kerckove dizia que foi para voltar a unir as pessoas que haviam sido afastadas pela invenção do alfabeto), foi justamente porque ele faz parte daquilo que somos de mais viral e autêntico. Num mesmo pasmo, somos percorridos por essa corrente de ar que nos faz ser autores, actores, partes de cenas quebradas, parcelas de actos que se reabrirão, didascálias solenes, quebrantos murmurados, encenações inteiras (“Juliet: O comfortable friar! where is my lord?/ I do remember well where I should be,/ And there I am. Where is my Romeo?*).
Somos um corpo e um ser de tentáculos obscuros feito para construções do mundo que semeiam imagens. Imagens que colaremos a factos em alvoroço. Mas factos que logo se desenrolam e despegam do cardume das coisas vividas e desejadas. Avançamos e as passadas apagam o próprio avanço ficcional em que nos revemos. Sobrará a invisibilidade do espanto, talvez.
Foi o que me aconteceu na semana passada. Vi-me atolado pelo espanto em estado puro, se é que isso existe. Eu explico: é no mínimo extravagante uma pessoa escrever um romance há duas décadas e, depois, a coisa tornar-se acontecimento (e, para mais, com um lastro verdadeiramente trágico e displicente pelo meio). Refiro-me ao aluimento da estrada entre Vila Viçosa e Borba, meu trilho de infâncias e de piqueniques na tapada real, mas também cenário do final do meu romance ‘A Falha’ (1998). Bem sei que no filme do João Mário Grilo (que adaptou o romance em 2002), a tragédia era ainda mais clara do que no romance.
Confesso que, nos últimos dias, me senti a andar no ar com os pés ligeiramente em terra. Tal como escrevi no dia do desastre, nunca foi minha aptidão insuflar de realismo os meus romances. É coisa que não está em mim e quem me conhece sabe-o. No entanto, quando escrevi ‘A Falha’, tinha a consciência plena de que havia alguma verossimilhança na abordagem. E os factos comprovaram-no. Só no precipício do imediato, esta estranha relação entre realidade e ficção faz soar as suas turbinas, é verdade. Julieta bem podia ser o nome da porta que dá para o meu pátio que, como se sabe, não é em Verona mas sim em Lisboa. O meu pátio que, afinal, é um grande teatro que habita na minha cabeça e em mais lado nenhum (“Prince”: “(…) Came to this vault to die, and lie with Juliet.” (…) / “Montague: But I can give thee more:/ For I will raise her statue in pure gold;/ That while Verona by that name is known,/ There shall no figure at such rate be set/ As that of true and faithful Juliet”*).