A literatura popular de natureza profética foi uma potente arma de guerra entre o Islão e o mundo cristão, pelo menos entre o século VII e finais do século XVI. Nela encontramos milhares de textos que prenunciaram o que hoje designamos por “fake news” como se fosse uma coisa totalmente nova. E não se pense que os milenarismos tenham constituído, nesse vasto período, uma exclusividade da cultura cristã, como geralmente se crê. É este o tema da segunda crónica de 2020 que aqui vos deixo.
Numa profecia da minoria cristã-nova e mourisca da foz do Ebro, provavelmente dos anos trinta do século XVI, podia ler-se: “No se detallará/ ni sabrán k(w)ando se levantará el dí(y)a/ del judiçi(y)o d-akí-(y)a ke verán los/ montes ke se abrán ap(a)lanado”[1] (não se especificará, nem ninguém virá a saber quando será o dia do juízo, daqui até que os montes se tenham aplanado). Esta curiosa metáfora da espera escatológica, que reata, aliás, uma expressão presente no Alcorão (na surata XVIII,45), centra-se mais na ideia de espaço do que no cômputo temporal, o que está de acordo com o facto de a revelação islâmica ter sempre privilegiado a natureza a outro tipo de simbolismos. No entanto, eles também vigoraram e de que maneira. Passemos a factos.
Durante o reinado do quinto califa abássida, o famoso Harún ar-Rashíd (764-809), surgiu a público – com diversas versões – um texto enigmático designado por Apocalipse de Bahíra. Esta profecia anónima (atribuída a um monge cristão que se teria convertido ao Islão) integrava-se na tradição de uma outra de origem cristã (o chamado Pseudo-Metodius dos anos 660-680) em que se imaginava um imperador-salvador que, mil anos após a morte de Alexandre-O-Magno, apareceria para pôr cobro à súbita emergência islâmica. Como A. Abel escreveu, “o surgimento dos árabes foi apresentado no Apocalipse de Bahíra, tal como no Metodius, enquanto reflexo de um dos acontecimentos catastróficos que preparariam o fim do mundo”[2]. O texto iniciava-se com uma visão de tipo danielítica e terminava com uma série de predições que se sucederiam a partir do ano 1050 de Alexandre (ano de 677), em consonância com as premonições milenares do Metodius cristão.
Tal como foi apanágio do mundo cristão, também no Islão a semana cósmica dos sete milénios fez parte integrante do imaginário popular, ainda que à margem das ortodoxias e das disputas teológicas. Um bom exemplo é a Taríkh ar-Rusul wa-l-Mulúk (História dos Profetas e dos reis) de at-Tabarí (838/9-923)[3]. Na primeira parte do livro, o autor, debatendo-se com a duração do mundo, afirmava: “… foram transmitidas informações, sob a autoridade do mensageiro de Allâh, que provam a veracidade do testemunho, segundo o qual (todo) este mundo é de seis mil anos”. Uns séculos mais tarde, na fantástica al-Muqaddima (Discurso sobre a história universal), Ibn Khaldún (1332-1406) comentou a passagem de at-Tabarí, replicando: “at-Tabarí fundava-se numa tradição” que atribui a este mundo a duração de “uma só semana de todas as semanas do outro mundo”[4]. Céptico em relação a at-Tabarí, Ibn Khaldún, recorrendo ao Alcorão (Surata XXII,47) e a outras fontes da tradição (do Sahíh), corrigiu o seu predecessor e referiu que, nessa óptica, o mundo “teria durado (após a emergência do Islão) metade do sétimo de uma semana (de 7000 anos), ou seja, quinhentos anos”, devendo o fim já ter ocorrido em 1122, o que, de facto, não acontecera.
Nos Apocalipses populares, escritos durante séculos em terras islâmicas, a história surgia dividida em sete milénios, homólogos aos sete planetas que directamente a afectariam. Desta forma, a cada milénio corresponderia um planeta, uma língua e até uma forma de escrever. Neste sistema de homologias perfeitas, a criação de Adão remontaria ao primeiro dos milénios e o último ao advento da revelação de Maomé. No Apocalipse de Ka’b al-Ahbâr (séc. XIII[5]), o sexto século do Islão surge de facto descrito como o termo da revelação. Na tradução de A. Abel, o pequeno poema que fecha uma outra profecia milenarista, a Síhat al-Búm (também do séc. XIII), anuncia para o último ano do derradeiro milénio (999 após a Hégira, ou seja, para 1621) uma catástrofe generalizada, bem como a abdicação dos cristãos (no quadro do modelo islâmico da conversão universal que deveria preceder a era escatológica da salvação). Segundo M. Sánchez Alvarez, esta tradição profética popular ficou a dever-se à existência de tradições (hadíth) de cariz apócrifo que tinham enorme difusão e que se dedicavam a quantificar os “milénios da Hégira”[6] (lembremos que os mouriscos de Aragão foram definitivamente expulsos de Espanha no ano de 1610, não muito longe do que se afirmava na Síhat al-Búm).
A tradição do milénio da Hégira parece ter tido igualmente ecos, de acordo com A. Bouchard, na postura guerreira da dinastia Sa’dí (ou Saadiana) face às incursões de Portugal e Alcácer-Quibir comprovou-o à saciedade[7]. Embora haja autores que não relevam a importância teológica do milénio islâmico, caso de M. García Arenal[8], a verdade é que existem textos proféticos de origem cristã que o referiram à exaustão, tentando habilmente manipular os dados que aí se enunciavam. É o caso dos oráculos de “Leão o Sábio, combinados com os presságios do milénio da Hégira”[9] e de uma profecia turca anónima, editada em 1546 e atribuída a um enigmático personagem cristão de nome Barthélem Georgievitch. Os dois textos estabelecem ligações entre o milénio da Hégira e a conquista da “maçã vermelha”, interpretada como sendo Constantinopla. K. Setton estudou aprofundadamente este último texto e assinalou: “A profecia demonstra que os cristãos acreditavam deter o monopólio das profecias de guerra que anteviam a destruição do Império Otomano”[10]. Mas é igualmente verdade que os turcos criaram profecias de teor idêntico, uma delas, curiosamente, com o título latino, o Vaticinium Infidelium Lingua Turcica, identificava a “maçã vermelha” com a cidade de Roma.
Para além do milénio alexandrino, da semana cósmica e do milenário da Hégira, existe um outro modelo milenar nas geografias islâmicas que viria a ter grande importância no Ocidente cristão. Trata-se do registo astrológico que, para além da tradição das Tábuas de Toledo de az-Zarqâlí, se centrou sobretudo nas inúmeras traduções do Kitâb al-Qirânât (Livro das Conjunções Astrais), escrito no século IX por Abú Ma’shar, conhecido no Ocidente como Albumassar. Este texto foi a base para muitos textos sobre o fim do mundo que se espalharam no Ocidente e no Médio-Oriente a partir do final do século XII, já que o cômputo de 960 anos por cada conjunção astral atraía inevitavelmente conteúdos milenaristas. Jirâsh b. Ahmad, em obra composta para o vizir Nizâm al-Mulk (m.1092), propôs que, entre a emergência do Islão e o fim do mundo, duraria o tempo correspondente a uma conjunção astral adicionado de um século (o que apontaria para 1682). Entre muitos outros autores, Abú Ma’shar foi citado por Roger Bacon (m.1292) que concluiu que a lei de Maomé não poderia durar mais do que 693 anos (i.e. até 1315). Um século e meio depois, Martín García (1441-1521), bispo de Barcelona, calculou que o Islão duraria 875 anos (i.e. até 1497), relacionando a data fatídica de 1492 e a da conjunção astral de 1524 com o destino final dos mouriscos, os famosos cristãos-novos do levante ibérico (que, na altura da expulsão, seriam perto de 300.000: 135.000 a residir na região valenciana, 91.000 em Aragão e cerca de 45.000 em Castela).
Através das tradições (hadíth) e da proliferação de textos anónimos de grande difusão, o milenarismo islâmico foi um facto. Tal como no Ocidente, funcionou à margem das ortodoxias, embora estas não deixassem nunca de forjar premonições para manietar os inimigos. Algo muito parecido com o que hoje se passa com as chamadas “fake news”. O que dantes era o pretexto religioso para criar sentido é hoje a navegação na rede com múltiplas finalidades, mas sempre ao serviço dos mais obscuros poderes. Continuidades.