Histórias com H é uma rubrica onde relatamos as mais belas histórias do desporto mundial. O episódio desta semana fala sobre o mágico Natal de 1914, onde as tropas inimigas se juntaram para realizar um dos mais belos jogos de futebol de sempre.
A 1º Guerra Mundial trouxe ao mundo novas definições de destruição, morte e desumanidade. Apesar de tudo, esperava-se que o seu término chegasse antes do Natal de 1914, desejo que depressa se esfumou perante as ofensivas cada vez mais brutais de ambas as fações. Com a chegada do Inverno, o monstro ganhou um novo tipo de apetite e consumiu ainda mais, as terras europeias, tudo isto, enquanto dos dois lados das trincheiras, cada vez mais homens desesperavam pelo fim deste Inferno.
Mas, no dia 25 de dezembro de 1914, uma pequena esperança irrompeu pelas espessas trevas que rodeavam as trincheiras. E não é que o desporto desempenhou um papel importantíssimo nesse dia?
As ofensivas de ambos os lados antecipavam um Natal de 1914 de carnificina e destruição. A guerra, nos últimos meses, tinha tomado uma direção mortífera, direcionada pela vontade de ambos os lados em acabar de vez com as intenções do inimigo. Nas imediações da pequena localidade Belga, Ypres, as trincheiras recortavam o chão congelado pelas temperaturas glaciais que se faziam sentir. Elas marcavam as posições mais avançadas da linha de combate de cada uma das facções. No meio delas enunciava-se um terreno neutro: a terra de ninguém. Nele apenas habitavam os corpos inanimados dos soldados que numa altura fatídica tentaram transpor esta área, sem sucesso.
Foi neste mesmo local que no dia de natal se realizou um jogo de futebol entre os britânicos e os alemães, entre as duas facções inimigas, entre soldados que nas semanas anteriores apenas se queriam trucidar. Um ato que foi acompanhado por todo o tipo de fraternização. Desde a troca de presentes, ao consumo partilhado de álcool (esta última, culpa dos alemães e das suas imensas reservas de cerveja), às conversas exaltadas sobre todos os tipos de assuntos. Mas o que mais marcou este dia foi o inesperado jogo de futebol. Ele surgiu talvez com um caráter mais unificador, porque o desporto é uma língua universal, e se existiam dificuldades na fluidez de comunicação falada entre o inglês de sotaque profundo das companhias britânicas e o alemão impercetível dos batalhões germânicos, o chutar de uma bola, as fintas de corpo, as entradas em falta que roçavam o cartão vermelho, e os cantos mal marcados, todas estas peripécias naturais do desporto-rei, expunham um laço comum que uniu dois povos.
Mas este cessar-fogo por parte dos dois lados foi conquistado com grande dificuldade. Já semanas antes, os altos comandos de dois os lados previram este amolecer do espírito de matança e ódio que queriam ver imperar nas trincheiras e proibiram expressamente qualquer tipo de fraternização. Mas de forma desafiadora e rebelde, os alemães cultivaram este espírito natalício. Centenas de árvores de natal foram plantadas perto das trincheiras. Cantaram-se músicas de natal durante as noites mais frias e principalmente mais tarde, na véspera de natal. Um sentimento que, pouco a pouco, conquistava os seus inimigos, que se juntaram aos cânticos. O fuzileiro Graham Williams, da 1º brigada de fuzileiros de Londres, descreveu este ambiente de troca de cânticos natalícios numa das suas cartas, “Começamos a cantar o Come, All Ye Faithful e imediatamente os alemães uniram-se e cantaram o mesmo hino, mas em latim, Adeste Fideles. Que coisa extraordinária – duas nações inimigas a entoar o mesmo cântico no meio de uma guerra.” Num ato pacífico, alguns soldados alemães partilharam gritos de paz e expuseram a sua vontade de não haver guerra no dia de Natal – “Se vocês não lutarem, nós também não lutaremos!” – e pouco a pouco foi-se construído um contexto onde a humanidade acabou por ganhar.
O amanhecer do dia de Natal acordou tranquilo. De repente, a terra de ninguém, acabava por ser a terra de todos. As trincheiras, pela primeira vez desde o início do conflito, estavam vazias, tal como as armas que em montes disformes se amontoavam. Alemães, austríacos, ingleses, irlandeses, até uma pequena quantidade de franceses, todos se juntaram e construíram o verdadeiro espírito natalício. Bruce Bairnsfather, que serviu durante a guerra, escreveu: “Um dos meus soldados, que era cabeleireiro na vida de civil, estava a cortar o cabelo (…) de um boche, que estava pacientemente ajoelhado no chão, enquanto a máquina de corte deslizava em volta do seu pescoço.”
Trocava-se tudo e mais alguma coisa: chocolates, álcool, tabaco e até recordações tão simples como botões ou fotografias. O cabo John Ferguson escreveu, “Que visão; pequenos grupos de alemães e britânicos estendiam-se ao longo da frente de batalha”; “Riamos e conversávamos com homens que até há poucas horas atrás queríamos matar.”. De repente solta-se a loucura. Algum soldado tinha encontrado uma bola velha de futebol e tinha-a chutado para o meio dos companheiros. Quase todos largaram o que estavam a fazer e começaram a correr atrás da bola. Era o libertar de todas as más energias. A luz tinha penetrado pelas espessas trevas. “Não era uma questão de 10 para cada lado, mas sim 70 alemães contra 50 ingleses”, comentou um soldado inglês. Que importavam as barreiras na língua, ou as razões que os levaram a estarem todos ali, naquele dia. Nada disso importava, porque todos se entendiam no meio daquela linda confusão. No meio de gritos em alemão, das “cacetadas” dos irlandeses, dos sorrisos dos ingleses, o Natal renasceu. Ali, na terra de ninguém, durante uma das piores e mais sangrentas guerras de sempre. Foi ali que se colou dois vidros irremediavelmente partidos, dois exércitos de jovens que se matavam por ordens daqueles que por detrás das suas secretárias bebiam e comiam enquanto os mesmos morriam.
A partida de futebol mais importante das suas vidas acabou com a vitória alemã por três golos a dois. E apesar de parecer que o resultado não seria tido em conta, os britânicos bem se mostraram afetados pelo “score”. Apesar de alguns oficiais se terem mostrado contra todo este ambiente amigável – um deles um jovem oficial, de nome Adolf Hitler (!) -, a fraternização continuou em alguns sítios até ao dia de ano novo.
O cessar-fogo acabaria por ser terminado. Todos tinham a noção disso. O que importa é que naqueles momentos algo de muito importante se viveu. Algo mais poderoso do que qualquer tanque ou exército. Algo que uma bala não pode matar. Algo que ainda hoje se mantém suspenso nos ares das terras frias de Ypres e que se espalhou pelo mundo. Foi uma atitude de afrontamento aos ideais da Guerra. Foi breve, mas durará para sempre.