Na cooperativa Fruta Feia, os dias de trabalho são longos e intensos. Maria e Miguel, dois dos responsáveis pelo projeto, explicam o que fazem pessoas bonitas com fruta feia.
Primeiro passo: encher a bagagem
Destino: Oeste. A carrinha parte do Largo do Intendente, em Lisboa, e ‘marcha’ até Casal de Gentias de Baixo. Por entre a chuva e um sol que teima em não aparecer, chega-se ao primeiro local de recolha de frutos e hortícolas: a herdade da agricultora Isabel Ramos. Duas ‘buzinadelas’ que se fazem bem ouvir são o toque de chegada da equipa.
Com as mãos ‘na massa’, rapidamente começam a transportar-se vários quilos de batata doce e couve portuguesa que, por defeitos estéticos, fogem ao padrão de beleza normalizado e não conseguem escoamento nos mercados. Apesar do pouco tempo para efetuar a tarefa, nem mesmo os segundos contados evitam a troca de palavras de carinho e alegria, dada a boa relação entre os agricultores e o pessoal da cooperativa. “Estão aqui mais meia dúzia de ovos, que são para ti que estás magrinha de tanto trabalhar”, diz a rir Isabel para Maria, que começa a dar os primeiros sinais de cansaço, depois do esforço físico ao transportar as hortícolas. Entre conversas e trabalho, procede-se ao pagamento contra fatura e segue-se rumo ao agricultor seguinte.
De pé no acelerador, Maria explica que “o projeto Fruta Feia surgiu por vontade de Isabel Soares que, na altura, vivia em Barcelona. Viu anunciado, num jornal, um concursopromovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, no qual emigrantes portugueses eram desafiados a apresentar projetos de empreendorismo social. Começou a interessar-se pelo tema, a ver documentários e, depois de falar com um tio seu, agricultor, que a informou ir deitar um terço das suas pêras ao lixo, por não conseguirem venda devido ao aspeto e forma, o assunto começou a inquietá-la”. Este acontecimento deu-lhe forças para participar no concurso e garantiu-lhe a conquista do 2º prémio. Com posterior ajuda de uma campanha de crowdfunding, “conseguimos a quantia suficiente e abrimos a Fruta Feia, a 18 de Novembro de 2013. Nunca pensámos que, em tão curto prazo, conseguíssemos ter a logística que hoje temos e o apoio das pessoas que são muito importantes para nós. Estamos muito satisfeitos”, afirma Maria, entre sorrisos de entusiasmo .
“O nosso objetivo é combater o desperdício alimentar e de recursos, de forma a criar um mercado alternativo”
Segue-se viagem. Casais de Cima marca encontro com a carrinha ‘feia’ que, já carregada, faz as duas paragens até aos restantes agricultores agendados. Couves, laranjas, coentros, alfaces, laranjas, maçãs, cenouras, nabiças, alho francês e manjericão. Os produtos, que de ‘feios’ apenas têm as formas, são, de forma apressada, recolhidos e armazenados na caixa da carrinha. Uns mais pequenos, outros maiores, uns com mais brilho, outros mais discretos, uns com falhas ligeiras, outros com múltiplos defeitos, fazem destes produtos ‘rejeitados’ mas que em nada colocam em risco a saúde e a qualidade alimentar. Como afirma Maria, “o objetivo é combater o desperdício alimentar e de recursos, de forma a criar um mercado alternativo que fuja a estas dificuldades estéticas que os consumidores e os mercados impõem aos agricultores. Porque verdade seja dita: os mercados não aceitam porque, na hora, ‘nós’, que consumimos, preferimos aquele melão bem redondinho sem qualquer marca de dedo vincado, não é?”
“Há todo um trabalho que precisa ser feito no que toca a alterar mentalidades e práticas de consumo”
Passam 15 minutos da 1:00h da tarde. Depois do encontro com três agricultores, é hora de contar quilómetros até chegar ao ponto de entrega. Parede, na zona do Estoril/Cascais, aguarda a chegada de uma carrinha repleta de produtos do dia e prontos a serem vendidos aos associados, a um preço menor que nos grandes mercados.
Em viagem, conversa-se mais um pouco. Aborda-se o problema do peso da aparência, no ato de compra. “Ainda julgamos muito pelo exterior. Há pessoas que preferem o que esteticamente parece ser o melhor. A questão aqui é que a qualidade em nada interfere com a beleza. 30 % do que é produzido pelos agricultores é rejeitado pelos mercados por razões meramente estéticas. Há todo um trabalho que precisa ser feito no que toca a alterar mentalidades e práticas de consumo e se a ‘união faz a força’, então, neste momento, somos já uma equipa de 800 consumidores a pensar como nós”, comenta Maria.
‘Braços de ajuda’ e ‘pernas de aço’
A chuva marca a hora de chegada dos primeiros voluntários junto à entrada da SMUP(Sociedade Musical União Paredense), delegação onde decorre o ponto de entrega e venda das cestas ‘feias’. A voluntária Isabel, senhora na casa dos 50 anos a residir perto da Parede, aderiu ao projeto em setembro do ano passado. Fê-lo “porque é uma iniciativa onde ajudamos não só os agricultores, como também as nossas carteiras. (risos) Compramos a um preço mais barato e o único defeito que estes produtos têm é simplesmente o fato de serem ‘perfeitamente imperfeitos’, por fora. Na minha opinião, quando o interior é que conta , não há feiura que importe. E aqui para nós, que ninguém nos ouve: quando comemos, isso vale?”, pergunta a rir. ”Eu e o meu filho João vimos aqui praticamente todas as quintas. Foi ele quem me falou do projeto, descobriu e, com a curiosidade, veio experimentar. Eu vim atrás e aqui estamos os dois e com um enorme gosto. A equipa é muito simpática, o ambiente é bastante acolhedor. É uma família pequena que construímos aqui e que juntos trabalhamos com o verdadeiro lema de ‘um por todos, todos por um’”, conta.
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Cerca de dez voluntários reúnem-se na ampla sala que rapidamente fica repleta com cestas: umas grandes com capacidade para até oito quilos (sete euros); outras pequenas, a carregar os quatro quilos (três euros e meio). De joelhos ou de cócoras, a transportar da carrinha ou a montar na sala, todos entre si, de forma organizada, partilham tarefas. Um trabalho que em conjunto se torna mais fácil, apesar do esforço físico exigido. Os que começam a não resistir aos primeiros sinais de dor nos braços e dormência nas pernas já pedem uma ‘folga merecida’. “Até já há quem traga joelheiras, porque, quando se quer, há sempre solução, não é?”, pergunta, a rir, uma das voluntárias, sentada no chão enquanto coloca batatas pela fila de cestas. Não importa a idade. Observam-se desde jovens a pessoas com bastante mais idade. Basta ajudar e querer fazê-lo, por gosto e vontade. Cada um ao seu ritmo, os alimentos são transportados por entre os rostos franzidos de cansaço, mas felizes. O ambiente começa a ficar composto já com as cestas a ganhar forma e volume. Por entre as cores vistosas, é percetível a diversidade alimentar que por ali se faz sentir. A alface é o primeiro hortícola a ser colocado do lado direito, do esquerdo está a couve, e por diante, de forma arrumada e separada, os resultados finais começam a surgir.
“Tantas pessoas sem dinheiro para comer e toneladas de alimentos são desperdiçados por não serem bonitos. Há que haver mudanças”
A mãe de uma das responsáveis pelo projeto comenta, com entusiasmo, o crescimento da visibilidade e adesão à cooperativa que começou por apenas ser uma pequena ideia da filha: “Tem sido um projeto muito bem recebido. Consegue-se perceber que as pessoas começam a ficar sensibilizadas e, diria eu, revoltadas. Como é que estes alimentos, que nem sequer são feios, mas apenas deformados, vão parar ao lixo? Tantas pessoas sem dinheiro para comer e toneladas de alimentos são desperdiçados por não serem bonitos. Há que haver mudanças!”
Os voluntários começam a marcar o passo de despedida, perto das 17:00 horas. Mas antes recolhem a cesta que lhes é garantida pela equipa de responsáveis, como forma de agradecimento por todo o trabalho prestado. “São estas pessoas que nos ajudam a manter este projeto de pé. É um trabalho forçoso, que requer algumas horas de trabalho físico e que, se não fosse por gosto e vontade em ajudar, não seria possível. Eles são tão precisos quanto nós, que somos os responsáveis. Por isso, é mais que merecido, cada um dos nossos voluntários, no final, ter direito a um miminho que é ‘feio’ por fora, mas delicioso e bem docinho. Afinal de contas, o interior é que conta, não é ?”, diz Maria entre risos.
Um, dois, três: ação!
São os passos de uma criança, acompanhados pelos do pai, que marcam a primeira chegada de consumidores associados à sala. O pedido é de uma cesta pequena, reservada através da página online, paga presencialmente. ”Olha pai, que alface tão grande!”, diz o pequeno, enquanto são colocados no saco com o logótipo da cooperativa os alimentos da cesta. Uma exclamação que, em tudo, dita o porquê deste hortícola ali estar: um tamanho demasiado grande, inaceitável pelos mercados. Com um verde bem vistoso, que indicia ser do dia, e um aspecto “fora de série”, como afirma o consumidor, é no entanto um alimento ‘feio’ por ter um tamanho desproporcionado, segundo o padrão normalizado.“Mais perdem os supermercados e mais ganho eu, que como mais e pago menos. A carteira agradece e o estômago também”, diz, a rir.
A passagem das horas traz consigo uma fila de consumidores que ganha extensão. É Maria quem, sentada junto da mesa de pagamentos, aprova os pedidos de compra: “Boa tarde. O registo ficou em nome de Paulo e é uma cesta grande, se faz favor.” Mas se há quem, em menos de nada, entra e saia com a sua cesta levantada e um saco cheio, também há quem perca o ‘fio à meada’ e esteja vários minutos a pôr a conversa em dia. “Na verdade, as pessoas gostam de aqui vir, primeiro, por ser mais barato, segundo, a qualidade é um bem garantido e, terceiro, há uma bonita relação de amizade que estabelecemos com os nossos associados”, desabafa Miguel.
Um outro consumidor conta ser a Fruta Feia uma escapatória devido ao facto de não ter tempo “para ir ao supermercado. Aqui, chego e, em cinco minutos, estou despachado com produtos de qualidade.” E confessa, entre risos: “O aspeto nada me diz, tanto que pode ver que esta batata (retira do saco) é tudo menos bonita mas, pela experiência e porque compro há já vários meses aqui, tudo é fresco e ótimo. Às vezes, o que de mais bonito é por fora, mais amargo e podre é por dentro, não é assim?”
O eco faz-se sentir e denuncia uma sala ampla com cada vez menos cestas. Começam as primeiras arrumações. Contudo, ainda marcam presença, espalhadas pelo chão da sala, as cestas dos que para a última deixam tudo para fazer.
Total: 238 cestas, 67 grandes e 171 pequenas. Várias centenas de alimentos que, graças à cooperativa, não foram desperdiçados e viram uma mesa como destino e não o lixo. Batem as 21:00 horas, sinal de fecho ao público. Organiza-se a sala tal e qual como foi encontrada, tudo é arrumado e limpo. As cestas retornam à carrinha, para, na segunda-feira, partirem em viagem ao encontro de outros agricultores com novas frutas e hortícolas. “Como se vê, é uma cooperativa que, nos dias em que trabalha, arranca para a estrada bem cedo e só termina pela noite dentro. Porque nos asseguramos que, desde o momento em que partimos até à hora em que fechamos o ponto de entrega, tudo fica em condições para daqui a uma semana regressarmos. É um trabalho de responsabilidade e compromisso que a Fruta Feia acorda em pleno, para que o funcionamento seja o melhor e o mais eficiente possível”, afirma Maria.
Já a fechar a carrinha, é hora de dar o passo de despedida. Com o rosto a marcar feições de cansaço, é tempo de fazer uma última revisão para salvaguardar que tudo está bem. Últimas palavras trocadas, é com alegria que a equipa manifesta o bem decorrer. “Vamos para casa satisfeitos. Conseguimos vender o que era suposto e orgulhamo-nos de conseguir ajudar muitas famílias que fazem dos campos o seu sustento. São toneladas de alimentos que são aproveitados e não desperdiçados, e é muito bom trabalhar com objetivos deste tipo”, explica Maria.
“Queremos ter uma rede nacional”
Depois de um dia exaustivo e com as pernas e braços a quebrarem de esforço, é em conversas paralelas que se comentam objetivos futuros. Devido às proporções do projeto, “desde o surgimento da ideia até à adesão estrondosa das pessoas à cooperativa, o nosso objetivo, a longo prazo, é replicar a ideia um pouco por todo o país. Recebemos vários emails de agricultores, tanto do sul como do norte e também de outros lugares aqui do centro, a pedir informações sobre quando vamos abrir em mais locais, porque a dificuldade para escoar produtos tem sido um problema cada vez maior”, afirma Miguel.
Com um horário de funcionamento para consumidores, em Lisboa, sempre das 17:00 às 21:00 horas, no Café do Largo Residências, Largo do Intendente (segunda-feira), no Palácio Sinel de Cordes, Campo de Santa Clara/ Feira da Ladra (quarta-feira) e na Parede, na SMUP (quinta-feira), informa a equipa que já conta com mais dois novos locais de entrega, na cidade do Porto. “Queremos ter uma rede nacional mas, por agora, mantemo-nos apenas nas grandes cidades, pelo facto de ser das cidades que provém um maior número de emails a pedir ajuda para escoar os produtos. As pessoas estão mais dependentes dos supermercados e há um maior desperdício alimentar. No Alentejo, a maioria dos residentes tem as suas hortas e o que é plantado em excesso dá-se à vizinha, nunca ao lixo. Mas quem sabe se, daqui a um ano, não estaremos a negociar com outros locais por Portugal fora?”
Fica a questão e, com ela, igualmente, um convite, por parte da equipa Fruta Feia: há quem queira vir fazer parte desta cooperativa, quer seja como produtor quer como voluntário? As palavras de Maria ditam, em tom de promessa: “ União, boa recepção e muita entreajuda como lema de equipa. Sempre prontos estamos para receber novos braços de ajuda e cheios de força. Sejamos cada vez mais pessoas bonitas a comer fruta ‘feia’, ou ‘menos bonita’, como queira cada um de nós chamar-lhe.”