Não é uma mulher que glorifique as mulheres. Nem é uma mulher que escreva sobre mulheres por estar na moda. É apenas uma mulher, mas sem a senha da virgem Maria que, como se sabe, foi contrariada pelo destino.
O sinal repete a forma duma espada curva de gume único. É o mesmo sinal que desenha a sombra na testa da mulher. Algumas alvenarias decompostas por trás, a maior parte invadidas pelo cheiro intenso das amoras negras. A voz grave traz consigo a ameaça. O peso do caos.
A alcatifa azul que aparece tantas vezes em sonhos sai do quarto e penetra no pomar até à estrada. Nas bermas de areia solta, a mulher come rapidamente os últimos gomos da laranja como quem salta pela janela. Um equilíbrio interrompido no centro do corpo.
O autocarro avança a estalar os metais. É manhã cedo. A mulher diz muitas palavras sobre aquele suspiro que apenas se escuta no fundo do cesto de verga, embora as mãos apertem as asas do cesto com tenacidade de guerreira. Diz o mesmo dessa tarde que parece ter-se apoderado de todas as tardes anteriores.
O corpo flanqueia ilhas invisíveis e os braços espreguiçam-se para tactear essa possibilidade. O passado é apenas feito de luz e o que se sabe são os músculos agora a desafiar as suas discretas extremidades.
Os recantos da mata são os recantos dos humanos, talvez mesmo os mais antigos. Refúgio ou reentrância para que os braços longilíneos sejam riscados pela mulher sobre a pedra. Até que abre o saco numa das clareiras do jardim, hesita, mas acaba por deixá-lo ali entregue à sua sorte.
Há lagos com cisnes e choupos à volta que são mulheres, mas só ela abandonou o filho num presépio natural. Lagos que levantam reflexos para esquecer a escuridão, lagos que inventam mapas volúveis para aprender a falar. De cada vez que lá passava, a mulher transformava-se numa ramagem e, vista de cima, caberia ao longo pescoço do cisne pensar o significado dessa ramagem.
Um menino igual a Jesus sai do saco e faz-se gente. Ele sabe que as grandes mansardas foram concebidas para os sótãos que se perfilam no topo das cidades. É num desses torreões que a mulher vive, já que o seu ofício passa por esquecer a terra e as suas armadorias desconhecidas. Só ela sabe quantas são as escritas, as quilhas e também os mastros enterrados no fundo da duração.
Ela ama Botticelli por causa dos cabelos de Vénus. Ama com a língua todas as outras mulheres. A luz é o defeito da grande noite que precede o nascimento, mesmo o de Vénus por ter escolhido a concha para desafiar a obscuridade. Jesus é um bebé abandonado que cisma com hortências a falar em voz baixa.
O bebé, depois rapaz e depois homem vê deus nas duas hortências que se debatem com aquele verde das pequenas vagas. Na realidade vê deus no seu próprio bosque, um deus selvagem que lhe levanta a cegueira na direcção de algumas das madressilvas menos acessíveis à mão.
Nos dias em que não regressa a casa, a mulher entrega-se a imersões profundas e prolongadas com breves aparições à superfície para respirar. E arrepende-se fortemente. Transforma-se então numa mariposa como se o movimento ondulatório dos golfinhos fosse o seu. Por vezes, quando coloca o pé num dos extremos desse percurso, grita. Um grito que dá a ouvir o mais claro batimento do mundo.
Também ela se decompõe em várias partes à imagem daquelas estrelas cadentes com rasto luminoso que dividem o céu em dois numa fracção de segundo. Quem a olhe vê um ponto branco a subir a rua apenas para ir comprar pão.
A mulher mantém muitos címbalos dentro do pensamento. São meios globos que repercutem nas nuvens ideias ainda inabitadas. Quando as fixa na memória, volta a arrumar todos os lugares por onde nunca chegou a passar. Foi numa dessas tardes que regressou à mata. Tarde demais.
O autocarro deixou de estalar os metais. Será essa a sensação de uma chegada, mas uma chegada em vão. A mulher diria o mesmo do xilofone que pára por instantes de tocar. A pausa que se cria é tão parecida com uma encosta que abruptamente se precipita sobre o mar. Com uma perna de cada lado desse mar, a mulher faz da gestação um par de andas que se movem por si. Nada as fará chegar a lado nenhum. E o que terá sido feito do saco?
Responde a voz que fala por dentro da mulher. Diz que a insónia é uma das mais raras gazuas, porque entra por todas as portas, infiltra-se em todas as camadas da pele e penetra em todos os continentes. A mulher conhece esta outra voz como mais ninguém, porque vive dentro e fora da insónia ao mesmo tempo e apenas os animais corpulentos lhe conseguem tatuar as entranhas.
A alcatifa azul que aparece regularmente em sonhos é um mar impiedoso a bater nas arribas. Lê sempre em voz alta o mesmo livro escrito no areal, às vezes ascende pelas escarpas e projecta-se no céu da boca da mulher que aprendeu a cantar o cheiro das amoras negras. O bebé que se fez homem confunde-se hoje com esse cheiro que canta. A mulher não o reconheceu, nem nunca o reconhecerá.
É verdade que a beleza é uma forma de evasão que se aproxima do caos, ainda que sem essa ideia de peso. O que torna leve a percepção do caos e da beleza, uma e outra partos tão profundamente incertos, é o facto de a intimidade não ter voz. O que não significa que não a procure fora de si em certos andamentos da natureza. É por isso que a mulher continua abraçada à sua árvore.
A viagem desacerta o local de partida, mas afasta-o definitivamente do esquecimento. Há troncos de palmeiras que convivem com a maré baixa e esta é a imagem que melhor marca a distância. Um continente inteiro pode escapar ao corpo que o visita. Razão por que o local de partida não viaja, embora empreste a si mesmo o mais apurado dos viajantes. A distância é a medida criada por esse empréstimo quase invisível.
A mulher regressa ocasionalmente ao lugar de origem, mas nada aí a prende, a não ser o homem sentado que há muito perdeu a cabeça. O sinal desenhado no pescoço repete a forma duma espada curva de gume único.
A mulher que nunca reconheceu o filho enterrou-o sem saber de quem se trataria.
A mulher que se mata sem o saber acorda sempre à mesma hora e leva todos os dias aquele saco de serapilheira para a mata, antes de chegar ao emprego. Jura que o saco suspira e que a mata é um presépio com um burro, uma vaca e três reis magos.