Querido Pai Natal, já não é a criança que te escreve. Já não quero casinhas de bonecas, nerfs nem jogos de tabuleiro. Hoje vivo no soneto de Camões — “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Contudo, agradeço a generosidade que me proporcionaste durante o tempo de pureza.
Na altura, ainda não sabia que as bonecas são a simplificação perfeita das mulheres no mundo, que existem nerfs [armas] de verdade e que o monopólio se trata da vida real. As bonecas são bonitas, dóceis cuidadoras do lar e pouco mais. Eu gostava delas, até perceber que querem que eu seja igual. Nascer mulher é ser sombra. É ficar melhor calada, quando se trata de futebol e dos outros assuntos também. É não ousar ser ousada. É ter de repetir uma prova que um homem não precisa sequer de realizar.
A luta pelo reconhecimento do direito das mulheres é custosa e ainda longa. Agradeço não ter nascido em países como o Afeganistão, a Síria e o Iémen. Esta carta não estaria, certamente, a ser produzida. Não só pela ausência de liberdade de expressão, mas porque há mulheres, por lá, que não sabem escrever, pois é-lhes negado o acesso à educação. E já não devem acreditar no Pai Natal. Se calhar já não acreditam em nada.
Sobre as nerfs, descobri que existem versões diferentes daquelas que recebia quando era criança e que as balas, afinal, podem matar. E hoje quase todos têm uma nerf de verdade. Parece que uma vida já não vale nada e eu pensava que nada valesse uma vida. Que desilusão esta fase adulta.
Na última carta que te escrevi, pedi-te um monopólio, que me ofereceste com carinho. No jogo do monopólio, compete-se com amigos, por dinheiro, propriedades e recursos. Na vida real, traem-se amigos, por dinheiro, propriedades e recursos. Pouco separa o jogo de tabuleiro da vida real, nem todos começamos da mesma partida.
Há vantagens iniciais concedidas a alguns que influenciam as suas possibilidades de sucesso. Uns com tanto e outros com tão pouco. A meritocracia é um conceito hipócrita, o mundo é desigual e a justiça nem sempre é justa.
Não quero que as crianças deixem de gostar de brincar com bonecas, nerfs e de jogar monopólio. Quero que o mundo mude e adote a bondade das crianças. E que os brinquedos, sejam apenas brinquedos. Recordações que nos abraçam e nos transportam para a melhor fase da vida.
Nas regras universais de uma carta ao Pai Natal sempre esteve imposta uma regra: “tens de te portar bem”, mas há quem se porte muito mal e mesmo assim receba presentes teus. Pensei, por isso, que poderias quebrar a regra de seres real somente para as crianças e me pudesses conceder um pedido — porque ainda acredito em ti.
Para este Natal, gostava que os Direitos Humanos fossem respeitados em todos os países do mundo. É injusto, sei bem, deixar sobre os teus ombros responsabilidade tamanha. É também por isso que desejo ser jornalista. Mostrar ao mundo o que o mundo é. Fazer com que as pessoas pensem por elas. E se não fores tu, eu mesma procurarei garantir a crença no improvável, que ainda tem morada em mim.
Com carinho, daquela que ainda acredita que podes ajudar.