Enquanto o mundo descansa, os ativistas dos direitos dos animais aproveitam os fins-de-semana, os feriados e as folgas para lutar contra o que defendem estar errado. Às 9 da manhã de domingo, voluntários do Lisbon Animal Save reúnem-se à porta de um matadouro, em Mafra, para mais um dia de luta.
O vento e o frio fazem-se sentir na região de Mafra, mas nada demove os ativistas que chegam a pouco e pouco. O encontro à frente da porta do matadouro estava combinado para as nove e meia da manhã, pela ‘Lisbon Animal Save’. A organização é composta por Yolanda Santos, Cristiano Mourato, Francisco Brandão e Mónica Salvado. Antes de iniciarem a ação, os quatro fazem um discurso inicial onde explicam o que irá acontecer e esclarecem dúvidas que possam surgir entre os cerca de vinte participantes. Esta vigília está inserida no ‘Wake Up World’ que, como explica Yolanda Santos, “são vigílias especiais que têm como objetivo, acordar o mundo, fazer muitas partilhas e levar as pessoas a juntarem-se à causa”.
O sol brilha, mas os ativistas evidenciam sentirem-se angustiados por assistirem aos camiões a passar e não poderem fazer mais do que tirar fotografias e acariciar os animais que estão a caminho do matadouro. Durante o discurso inicial, Francisco Brandão acrescenta palavras de incentivo e agradecimento: “Obrigada por estarem cá. É muito importante darmos voz aos animais. Estamos aqui para ver com o coração.” Máquinas fotográficas, giz, cartazes, águas e comida são alguns dos materiais que não faltam nestas ações. Os organizadores e os voluntários agarram em giz e escrevem no chão mensagens para sensibilizar quem por ali passa. “Todas as vidas são importantes”, lê-se no asfalto. O som do disparo das câmaras fotográficas é contínuo e é tido como fundamental para gravar todos os momentos das ações. Os cartazes que os voluntários seguram nas mãos têm imagens fortes conjugadas com frases para despertar sentimentos. Os carros em movimento abrandam para os passageiros lerem e perceberem o que está a acontecer.
Um movimento de compaixão
O ‘Lisbon Animal Save’ foi fundado no dia 2 de novembro de 2017 e é uma organização sem fins lucrativos que faz parte do grupo internacional ‘The Save Movement’. O movimento ‘Save’ surgiu em 2010 e tem grupos espalhados pelo mundo. Em Portugal, conta com 12 grupos em atividade nas várias regiões do país. Alguns têm fins diferentes, mas todos apelam à empatia pelos animais e pelo ambiente. “À semelhança de outros grupos nacionais e internacionais do ‘The Save Movement’, o foco do ‘Lisbon Animal Save’ é prestar testemunho à chegada dos animais ao matadouro e dar a estas criaturas inocentes um rosto e uma voz que eles nunca tiveram”, adianta Francisco Brandão, um dos organizadores.
Os nervos estão no corpo dos ativistas que tremem não só pelo frio matinal, mas também pela ansiedade de aparecer um camião. Por mais que tentem criar um ambiente menos pesado, a tensão está muito presente. Hoje, antes da hora marcada, já tinha passado um camião para o matadouro. Quem, por acaso, chegou antes conseguiu captar algumas imagens dos animais. De súbito, chega outro. Os ativistas correm, rapidamente, atrás dele. Alguns voluntários levantam as câmaras fotográficas e os telemóveis para obterem imagens. A persistência é uma característica evidente nestas pessoas que lutam pelos direitos dos animais.
A organização tenta conversar com o condutor do camião para parar, de forma a estarem mais tempo com os porcos, mas é em vão. A rapidez com que o camião se movimenta para dentro do matadouro não dá tempo para os ativistas realizarem o que pretendiam com êxito. Uma das voluntárias, Sara Martins, manifesta a sua frustração em lágrimas. “Estar à porta de um matadouro e ver os animais desperta um sentimento de impotência. Também sinto muita tristeza porque quero tirá-los dali e levá-los comigo”, desabafa.
Para além de todo o negativismo associado àquele lugar, os ativistas mantém-se firmes e estão na ação para cumprir um objetivo. “Ao mesmo tempo, sinto que estou aqui a fazer o mínimo: dar voz aos animais e a contribuir para que as pessoas consigam perceber que aquilo que têm no prato tem um rosto e uma voz”, alega Sara Martins. Mónica Salvado, uma das organizadoras do movimento, deseja, como todos os ativistas, salvar os animais da morte: “Sinto muita ansiedade porque vemos os animais a caminho da morte e não podemos fazer nada.” Já Yolanda Santos revela que, nestas situações, é invadida por um misto de sentimentos que “vão desde a vergonha, enquanto ser humano porque o facto de ainda precisar de estar numa vigília é sinónimo de que alguém está a tratar mal os animais e não está a respeitar a sua condição e a natureza e, simultaneamente, esperança e motivação”. E argumenta: “Quanto mais vou a vigílias, por um lado fico triste e frustrada, mas, ao mesmo tempo, sinto que preciso de continuar porque aqueles animais dependem de mim enquanto ativista e de todas as outras pessoas.”
As razões que movem os organizadores e voluntários do ‘Save’ são muitas. Cristiano Mourato enumera vários propósitos das vigílias, entre os quais, o de “proporcionar um espaço na sociedade para as pessoas que sofrem com a morte destes animais poderem fazer luto, de forma a aliviar o seu sofrimento e a superar da melhor forma o que acontece”. O organizador acrescenta também que é uma oportunidade para “os ativistas poderem verdadeiramente conhecer as vítimas por quem lutam difusamente e assim melhor sensibilizar o público em geral nas suas ações de rua”.
Apelo à compaixão
Quando é referido que existe uma ação de ativistas veganos à porta de um matadouro, a imagem que surge na mente das pessoas é de conflitos e guerra. A verdade é que os organizadores e voluntários do movimento ambicionam alcançar a paz entre todos e espalhar a mensagem também aos funcionários. “É uma relação dualista, quer pela «novidade» em terem pessoas que estão dispostas a estar em frente a um matadouro para receber os animais com compaixão e interesse, algo que os mesmos na forma dissociativa como sempre os viram lhes causa estranheza. Quer pelo possível receio de estarmos, de forma direta, a contribuir para a cessação dos seus postos de trabalho com o foco que colocamos nestas indústrias cujo modelo de negócio é o sofrimento e a morte de biliões de seres sencientes e inocentes”, explica Francisco Brandão.
Um dos cartazes que os voluntários seguram vê-se escrito “nada contra os condutores, estamos aqui pelos animais”, realçando essa vontade de harmonia entre todos. Mónica Salvado conta que, quando iniciou a caminhada no ativismo, sentia raiva dos trabalhadores mas, ao longo do tempo, começou a compreender o “outro lado”, depois de algumas conversas que despertaram o interesse em perceber o que está no coração destas pessoas. Como constata a ativista: “Infelizmente, mudar de estilo de vida não é assim tão fácil como, às vezes, queremos pintar. Para algumas pessoas não é fácil sair de onde sempre trabalharam e cresceram. Ninguém quer matar animais. O ser humano tem a particularidade de ter compaixão no seu coração. Todos a têm mesmo aqueles que na linha de abate matam os animais. Simplesmente, essas pessoas estão programadas para não atingir a compaixão que nós sentimos”. De uma forma geral, a relação é pacífica. Apenas há falta de comunicação entre a gerência e os ativistas, o que pode criar um ambiente menos positivo entre as partes. “Procura-se estabelecer uma ponte para uma comunicação saudável, de forma a melhor entendermos o lado opressor para encontrarmos soluções para ambas as partes”, revela Cristiano Mourato.
A força das imagens
As imagens circulam pela internet através de todos os grupos de ‘Save’ que existem em Portugal e no mundo. As fotografias chocam o público no sentido em que criam a ligação entre o animal e a comida que costuma fazer parte das refeições. Na perspetiva dos ativistas que recebem comentários e reações nas redes sociais, o olhar do animal a caminho do matadouro poderá sensibilizar o público e despertar a mudança. Francisco Brandão avança que “as reações iniciais são de espanto, descrença ou falta de vontade em se relacionarem com esta realidade que se percebe agressiva. No entanto, essas reações são ultrapassadas pela perceção real e imediata da necessidade de fazer algo que minimize e traga cada vez mais para o debate público esta realidade, que é, no geral, escondida dos olhares e dos corações do público”.
Yolanda Santos considera que os vídeos que mostram os animais a serem mortos, apesar da frustração, não criam reação no público, ao contrário das imagens dos animais a chegarem nos camiões às vigílias. “As pessoas veem os olhares, o pânico, o medo, a afetividade que os animais têm e conseguem sentir afinidade porque veem a vulnerabilidade e porque se identificam com eles”, explica. “As vigílias são muito eficazes por isso, porque mostramos os animais num estado puro e vulnerável”, acrescenta a organizadora.
Eva Ferradosa é a prova do poder de mudança das imagens. Tornou-se vegetariana recentemente, depois de ter sido confrontada com imagens das vigílias. “Antes de vermos fotografias e vídeos, pensamos que quem opta pelo veganismo está a exagerar e que as coisas não são assim tão más. Só depois de ganharmos a coragem de saber, realmente, o que está por de trás de toda esta indústria e de decidirmos deixar de ser indiferentes a esta situação é que somos bombardeados com sentimentos”, expressa Eva Ferradosa, confessando que “os sentimentos de culpa tinham começado a aparecer”.
Nem mais um camião. Os ponteiros do relógio revelam que o fim da ação se aproxima e todos se reúnem em círculo novamente. Os organizadores deixam algumas palavras para finalizar. Francisco Brandão reforça que agora é necessário descansar a mente e avisa que quando estiverem mais sozinhos é provável que se lembrem destes momentos de tensão, memórias que poderão desencadear sentimentos de tristeza. O ativista pede que cuidem de si mesmos. No final, realizam um minuto de silêncio pelos animais que serão mortos. Numa roda com os braços nas costas uns dos outros, os ativistas mantém o silêncio durante aquele minuto. Uns olham para o chão, outros deixam os olhos fechados, todos respiram fundo, enquanto Yolanda Santos acompanha o tempo no relógio. O clima é tenso, silencioso e de pesar para todos os que estão presentes. Os pombos voam em coletivo por cima do edifício, como se entendessem o que acontece num lugar tão negativo como é um matadouro.