No primeiro capítulo de Arbeit am Mythos (Trabalho sobre o Mito), intitulado “Depois do absolutismo da realidade”, Hans Blumenberg ilustra o modo como os humanos levaram a cabo uma primeira tematização do mundo, depois de uma longa fase primitiva sem qualquer domínio do mundo envolvente. Este estado de dependência ter-se-ia pautado, segundo o autor, pela “falta de previsão, de antecipação (do que está por vir) e da consequente falta de adaptação a tudo o que estivesse para além do horizonte”.
No centro desta fase pré-mitológica está aquilo que o autor designa por “Angst” – que se traduziria mais por ansiedade e menos por medo -, concebida como “um estado de antecipação particularmente indefinida” ou como “intencionalidade da consciência sem qualquer objecto”. A impotência generalizada que caracterizaria este estádio humano foi sendo superada à medida que as ocorrências particulares passaram, a pouco e pouco, de “não familiares a familiares”, de “não explicáveis” a “explicáveis” e de “não nomeadas” a “nomeadas”. A passagem da ansiedade originária (“angst”) a um estado de medo racionalizado (ou de consciência codificada do outro) é um dos momentos-chave desta superação, ou deste primeiro face a face com o desconhecido.
Nomear um relâmpago e atribuir-lhe factos significa inscrever essa ocorrência num âmbito familiar ou de proximidade, transpondo-a do desconhecido para a área do conhecido e criando, desta maneira, condições para um posterior uso de signos no contexto já do mágico, do ritual ou da adoração (projectando as ocorrências vividas em “poderes superiores” – “Ubermachten”).
O exemplo do olhar de Medusa que “mata convertendo em pedra” herda, naquilo que condensa e poderosamente afirma, esse primeiro momento em que a errância da ansiedade se transforma numa relação em que os termos em presença – um ‘eu’ e o ‘mundo’ – acabam por se significar (e, quando isso acontece, é o medo claramente e não já a ansiedade primordial que passa a mediar as relações entre os humanos e aquilo que os rodeia).
Este processo que Hans Blumenberg situa na “Vorverganggenheit” (“passado do passado”) alia sensação, percepção e afectos – entendidos como “condição de quem presta atenção” – a figuras, nomes, histórias e rituais vários que estão nos antípodas das actuais convicções de realismo, baseando-se naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. A superação do “absolutismo da realidade” é encarada por Blumenberg como uma tarefa lenta e gradual que implicou necessariamente o confronto com obstáculos, e que evoluiu, a pouco e pouco, para uma noção encenada de conjunto.
É deste modo que a exegese humana se terá iniciado, conduzindo à prática das primeiras metáforas e a alegorias ininteligíveis e, portanto, aos primeiros processos de significação (sinais que assinalam a caça, sinais que assinalam a compreensão do corpo e da fisiognomia, etc, etc.) que avançam do singular para o universal, gerando entre ambas as esferas uma série de ligações funcionais. Richard Rorty designou este processo teatral como a passagem do “olho do corpo” para o “olho da mente” que, ao fim e ao cabo, se viria a tornar na futura querela dos universais.
A lenta passagem do domínio do terror/ansiedade para a relativa estabilidade do mito consistiu, sobretudo, em converter a indefinição inicial em definição nominal (atribuição de nomes) e em transformar o que era estranho e inexplicável em algo familiar e atribuível (ou minimamente referencial). É provável, como refere Hans Blumenberg a propósito da construção dos mitos, que a saturação de imagens e de figuras a que posteriormente se chegou (o labirinto dos deuses e das divindades nas primeiras mitologias) tenha sido uma condição que, inevitavelmente, conduziria a novos patamares, nomeadamente ao patamar do “Logos” tal como os gregos o haviam de caracterizar.
Tudo começou pela noite, o enigma sem a consciência ainda de ser um enigma. Seguiu-se o encantamento pelos reflexos (a água que cria imagens especulares) e o momento em que o terror do desconhecido se transformou em medo de objectos particulares. As narrativas orais celebraram os inícios, através de panegíricos da fundação do mundo e da espécie. Os humanos descobriram que têm visões e transformaram-nas em modos de perceber quer o cosmos, quer os episódios mais imediatos. De jangada saíram dos continentes e foram percorrer os mares e alguns rios, navegações costeiras que condensaram percursos e alteridades.
Os nomes terão evocado a realidade pela segunda vez e contribuíram para reconverter a experiência acumulada num jogo tão fracturante que as suas flutuações foram quase sempre imputadas às divindades. A passagem do tempo gerou as primeiras melancolias e com elas a invenção de idades do ouro. Há mais de dez milénios, o neolítico travou o nomadismo recolector e permitiu ao humano cantar as entranhas da natureza e entender, entre os muitos mitos da infinitude, modos concretos de sobrevivência e de organização terrenas. As hordas e os estados impuseram limites e as disputas jamais cessaram. Nunca haveriam de cessar. Em nome deste repto total, a guerra tornou-se no denominador comum apaixonado dos povos e conduziu à criação da figura simbólica dos grandes heróis inimitáves.
Eis, pois, em brevíssima síntese, o decantar do que farei constar no Canto I de ‘Órbita’, título genérico de um longo trabalho que iniciei há já vários meses e que será composto por dez cantos poéticos (que correspondem pitagoricamente a dez mil versos), precedidos por um romance e sucedido por um ensaio. O projecto faz contracenar uma biografia do mundo (parte poética) com uma biografia singular (romance), deixando para o ensaio o olhar que livremente averiguará a proliferação do sentido em todas estas construções. Não é a obra da vida, mas é a vida escancaradamente a penetrar e a olear os interstícios da obra. A embarcação dos dias precisa de apostas de grande fôlego.