Da Engenharia Termodinâmica ao mundo da representação, mudança que veio a provar ser das decisões mais significativas na vida de Ângelo Torres. Hoje é dos atores negros com maior currículo em Portugal.
Nascido na Guiné Equatorial, mas com raízes são-tomenses e experiências de vida que passam por África, Europa e América do Norte, Ângelo Torres tem estado em diversos projetos de televisão, teatro e cinema nos últimos anos e vem-se afirmando como ator de referência em Portugal. Em entrevista, conta como foi o seu percurso.
O Ângelo teve uma infância invulgar, que não se prendeu a “um lugar”. O facto de ter crescido em vários países, com múltiplos cenários sociais e culturais, levantou-lhe provavelmente obstáculos. Isto de certa forma determinou aquilo que é hoje?
Claro. Dizem que nos primeiros dez ou onze anos das nossas vidas, a personalidade da pessoa define aquilo que somos quando adultos e o facto de ter vivido até aos 21 anos em cinco países definiu bastante. Na Guiné Equatorial, desde muito cedo vivenciei o que é uma ditadura repressiva com mortes e prisões arbitrárias. Isso cria um sentido de justiça e de igualdade bastante apurado.
Depois, em Espanha, sofri desde muito cedo na pele o preconceito e isso faz com que se apure outra vez o teu lado de justiça social, o porquê de uma pessoa se julgar superior à outra por uma questão de pigmentação. Mais, o meu entorno familiar é muito político, portanto, sim, determinou a minha forma de ser e de estar hoje em sociedade.
E em Cuba?
Foi a cereja no topo do bolo. Moldou o meu caráter e esse molde fez de mim a pessoa que sou hoje. Fiz-me jovem adulto lá e a forma de pensar de Cuba – pelo menos a do meu tempo – pactua com a minha forma de ser, classificar e analisar o mundo. Até, algumas vezes, preconceituosamente julgar. Cuba molda bastante isso.
Voltemos à infância. Numa entrevista à “Flash”, disse que era “órfão de pais vivos”. Pode comentar esta afirmação?
(risos) Sim, posso. Os meus pais separaram-se, a minha mãe veio-se embora para Portugal. Fiquei com o meu pai. Um pai à sua maneira “muito presente”, mas para qualquer criança “pouco presente”. Embora tivesse os pais vivos, não tive a partir dos 11 anos a felicidade de poder ter o acompanhamento diário constante. Dá-se a separação e deixei de ter esse acompanhamento. Há uma sensação de orfandade, essa afirmação advém daí.
Nesse mesmo período, ao longo dos anos, muitos deles passados em Espanha e Cuba, acompanhou o contexto cultural africano e português?
Não. O meu contacto com a realidade portuguesa dá-se em 1986, quando chego a Portugal. Sabia que Portugal era a metrópole, o país dos meus pais, mas a minha primeira metrópole foi Espanha. Enquanto crescia, não me lembro de alguma referência a Portugal, o pensamento era sempre “quando formos à Espanha”. Os meus pais falavam aquela coisa esquisita que era o português, o meu pai falava sempre connosco português, já a minha mãe falava espanhol.
Por isso, sabia que existia Portugal, mas não fazia parte do meu universo. Só tenho contacto real com Portugal quando chego a São Tomé, e aí oiço falar sempre mal. De Portugal, não, mas do colonialismo português. Estive cá em alguns momentos, maioritariamente de passagem. O contacto real com a cultura, o povo e a realidade portuguesa só aconteceu mesmo em 1986.
Estudou Engenharia Termodinâmica em Cuba, numa época em que o país estava ainda a assimilar a política social instalada. Sendo o período académico uma das fases onde o nosso pensamento reflexivo/crítico se desenvolve de forma mais robusta, a minha pergunta é se acha este período decisivo na construção do seu “eu” político?
Claro, foi determinante. Assumo-me de esquerda e, no seio famíliar, o meu pai era comunista. Cuba acabou por moldar a semente que já tinha sido lançada. Lá ganhei consciência política de adulto. Sou de esquerda graças à minha família, mas, sobretudo, graças à minha vivência em Cuba.
A entrada no mundo da representação
Tendo estudado numa área que é completamente diferente da que segue hoje, como se dá a sua entrada no mundo da representação? Foi mesmo no Chapitô?
Não, foi pouco antes do Chapitô. Quando vivi em Espanha, tive duas experiências como ator, ainda em criança. Aconteceu uma coisa engraçada. Tinha um primo e tratávamo-nos como se fôssemos irmãos, ele queria ser ator e eu arquiteto, hoje eu sou ator e ele arquiteto. Naquela altura, havia um senhor chamado Tio Ferro que estava à procura de crianças negras para fazer o filme do “Zorro”. Como ele tinha a informação que na minha casa havia crianças, foi até lá, falou com a minha mãe, o meu primo e convenceu-os para que fossemos fazer um casting.
Escolheram-me, mas quando me foram apresentar ao realizador, apesar deste ter gostado de mim, houve um senão: era muito alto para a idade. Estavam à procura de uma criança que aparentasse ter sete anos e, embora tivesse essa idade, aparentava ter nove anos, devido à minha altura. Sugeri-lhes o meu primo que, apesar de ser meses mais velho, era mais baixo que eu e ele acabou por fazer o papel.
Tempos depois, o mesmo homem foi lá a casa outra vez e propôs-me um papel em “O Comboio para Charleston”. Tive um papel pequeno e ficou esse “bicho”. Só que, ao chegar a São Tomé com a efervescência da independência, [esse “bicho”] acabou por adormecer e interesses mais altos sobrepuseram-se. É como aquela máxima do Amílcar Cabral: “A independência política é a mais simples de todas. A mais árdua é a económica, porque é uma luta sem fim e sem tréguas.” Eu estava envolvido nesta luta e, dentro daquele seio familiar, fui parar a Cuba. E, em nome disso, fiz-me engenheiro.
Gostou desses tempos?
Adorei. Foi o melhor período da minha vida. Os sete anos que vivi em Cuba foram fantásticos.
Mas já voltou lá?
Nunca mais voltei.
Não pensa voltar?
Não. Como diz a máxima, “nunca voltes a um sitio onde já foste feliz”.
O teatro e os contos
O teatro é algo muito presente na sua vida, inclusive há uns dias esteve envolvido na peça “Frei Luís de Sousa”. Foi o teatro a sua primeira paixão?
O “faz de conta” foi a minha primeira paixão. Independentemente de ser teatro, televisão ou cinema, essa possibilidade de poder fazer de outro, fazer de conta… mas primeiro tens de acreditar em ti próprio, para depois fazer acreditar aos outros que tu és [o outro]. Só que não tinha a consciência até chegar cá.
Fui desafiado indiretamente por um amigo. Ele disse a um amigo nosso, em comum, que estavam à procura de atores pretos [para o programa “Café do Ambriz”] e a brincar perguntei-lhe se podia ir. Ele respondeu: “tu não és preto?” e eu disse: “eh pá, até hoje de manhã, era!” E ele diz: “então vai…” Foi por causa disso que retomei outra vez.
Tempos depois, ligam-me da RTP para fazer outro programa “Por Mares Nunca Dantes Navegados”. Nas duas vezes, fui abordado pelo Jaime Campos e o Carlos Avilez como pertencendo ao Conservatório, quando na altura ainda não fazia parte. Naquela época, já tinha reparado que não gostava de termodinâmica e sabia que nunca seria bom naquilo… estava meio perdido e, sem querer, essa gente ajudou-me a encontrar.
Fui para o conservatório, adorei o ambiente, mas havia um pequeno problema. Tinha feito o 12º ano em Cuba e até chegar a papelada disseram-me que podia ficar a assistir como ouvinte. Só que, naquela situação meio periclitante, faltei muito e acabei chumbando por faltas. Soube que ia abrir o Chapitô e fui para lá estudar.
No primeiro ano, um professor de interpretação disse-me que precisavam de pretos na Cornucópia e acabei por lá ir, naquilo que foi a minha primeira experiência profissional em teatro. Comecei para muitos no melhor grupo de teatro português que, infelizmente, já se extinguiu. Fiz três peças, depois saí. A partir daí, foi um crescer até hoje.
E a história ainda passa pelo mundo dos contos…
Foi um colega meu chamado António Fontinha que me desafiou a contar histórias no ATL do Chapitô, na atividade de “tempos livres”. Fui, experimentei e gostei. A partir daí, durante muito tempo, os contos foram o meu ganha-pão. Hoje, infelizmente, conto menos vezes do que gostaria, no meio deste mundo da representação que adoro. Mas se me fossem perguntar qual é que mais gosto, acho que é a contar histórias, o contar histórias sou “eu”.
A televisão e o cinema
Foquemo-nos no que julgo ser o seu projeto mais marcante, “A Única Mulher”, uma produção que atingiu um grande sucesso. Como é que define essa experiência?
Foi muito boa. “A Única Mulher” tirou-me do anonimato. Já tinha, em 1996/97, feito um programa chamado “Pensão Estrela” que também teve sucesso, mas não se compara ao êxito arrasador que foi esta novela. De repente, as pessoas diziam: “O Ângelo Torres é ator”, sendo que já sou desde os anos 90. A novela trouxe-me para as luzes da ribalta. Hoje ainda não me dou ao luxo disso, mas caminho a passos largos para poder trabalhar, quando quero, com quem quero e como quero. Já faltou mais e apenas depende exclusivamente de mim.
Tal como “A Única Mulher”, muitos dos seus outros projetos televisivos como a “A Herdeira” e “Ouro Verde” são produções da TVI. Podemos dizer que já se tornou parte desta família? Sente isso?
Sim… não posso dizer que não. No outro dia, quando se fez aquela atividade do “Somos todos Moçambique”, estava a atender o telefone e dizia: “Olá, muito bom dia, aqui é o Ângelo Torres.” A senhora da TVI, que estava ao lado, disse-me: “Não Ângelo, tens que aprender a dizer: ‘Muito bom dia daqui fala o Ângelo Torres da TVI’.”
Depois, o repórter que estava lá disse-me algo que não sei reproduzir completamente, mas era qualquer coisa como: da prata da casa da TVI, os únicos que tiveram a coragem de acordar de manhã cedo num sábado tínha sido eu e o Marcos Pinto.
Trabalhei para a SIC há muito tempo, entre 96 e 97, depois ainda fiz lá alguns pequenos papéis, mas a verdade é que uma aposta contínua só tem sido mesmo a TVI. Não é só na minha pessoa, mas a TVI tem apostado na diversidade, mais do que qualquer outro canal em Portugal.
A par desta sua atividade em projetos televisivos também tem participado em diversos projetos cinematográficos. Recentemente, fez parte do filme “Gabriel” que agora está em exibição nacional. Pode falar sobre a sua personagem?
Faço de pai do protagonista, o Valdo. É um homem que sofre de Alzheimer, que está à espera da morte e quando o protagonista chega até ele já está nesse estado vegetativo. A minha participação é curta, creio que intensa porque foi muito pequena. Mas gostei da experiência e parece que é um filme que está a ter bastante boa saída.
A brincar, a brincar… entre papéis pequenos e grandes, devo ser um dos atores que mais filmes faz em Portugal. Não é por ser bom ou isso, é mais no sentido que, quando precisam de atores pretos, geralmente lembras-te daquele que está mais disposto: eu!
O filme lida com aspetos como a imigração, o bullying e a xenofobia, algo que em parte pode-se relacionar com a sua própria vida, devido ao que passou na infância. Sendo que tem participado em iniciativas como, por exemplo, o “Movimento Gentil”, da RTP, que visa promover a cidadania infantil, estas temáticas são algo por que sente uma obrigação pessoal e cívica?
Não é obrigação, é dever. Um dever cívico, que vejo como a razão de existir, de ser “eu”. Passa por aí. Não quero retribuir nada, mas preciso fazer isto. Se não o fizer, não me sentirei bem de manhã a olhar-me ao espelho. É um dever e, como dever que é, tenho que fazer.
Uma pergunta mais direta. Há uma desconfiança do público em relação ao cinema português, sendo que ao invés opta por assistir ao cinema estrangeiro. Há alguma razão para que tal aconteça?
Sim. O cinema português deu muitos tiros no seu próprio pé, foi autofágico quase. Intelectualizou-se muito uma coisa, conta-me uma história e faz-me dormir, ponto final. É o que as pessoas querem. Como contador de histórias, sento-me sem nada e digo “era uma vez” e as pessoas embalam. Como diz um conto árabe, contar uma história é embalar uma pessoa, fazê-la agarrar o rabo da nuvem, embalar no sonho, dormir e sonhar.
Um dia em que tens uma história simples que toca as pessoas no seu espírito, aspirações… a pessoa embala e, no final, agradece. Intelectualizou-se muito a coisa, fez-se a coisa fechada para um grupo de amigos, tentou-se inventar a pólvora quando o cinema já se faz há mais de 100 anos. E, claro, o público virou as costas. Enquanto os outros continuaram a contar histórias simples e apelativas, que é isso que as pessoas querem ver.
Discriminação em Portugal
Já está em Portugal desde os 21 anos. Uma última pergunta: alguma vez sentiu que a discriminação fosse um obstáculo e tivesse condicionado certas oportunidades?
Sim. Há discriminação? Há. Portugal é um país racista? É um pouco forte dizer isso, mas que existe racismo, sim, existe. Sem querer pôr-me em bicos de pé, devo ser dos atores com melhor currículo neste país devido ao meu percurso e, mesmo assim, só agora é que começo a poder respirar mais ou menos. Não é de hoje que oiço que sou bom ator, mas houve alturas em que, de repente, via os meus colegas a passarem pelo lado direito… vroom… e o meu carro com o motor constipado.
Insistiam que ficasse no Mini Austin, enquanto os outros tinham carros de Fórmula 1. Tenho condições para poder conduzir um Fórmula 1, deixem-me discutir o campeonato nesse carro. Acham que nos estão a fazer um favor porque viemos de África, quando não é de agora que estamos cá… Já estamos cá há muitos anos e, enquanto essa mentalidade existir na cabeça de alguns decisores, não saímos daqui.