20.07.2020
Alice é jornalista por paixão desde que se lembra e faz parte do grupo de mulheres que acham que os homens não gostam delas e que, por isso mesmo, não lhes dão qualquer tipo de crédito quer pessoal, quer profissional. Há cerca de seis meses, a meio de um divertido jantar no velhinho Snob, decidiu fazer uma arrojada aposta com os colegas: “Vou fazer de X primeiro-ministro.” As reacções dos colegas sucederam-se quase à mesma velocidade com que os copos apareciam na mesa cheios e desapareciam vazios.
21.01.2022
Alice chega à empresa de Mr. X 10 minutos antes da hora marcada e, enquanto aguarda tranquila e confortavelmente num dos vários sofás que por ali estão, aproveita para se pôr online com as notícias. Por razões de limitação de caracteres, dispensamos os cumprimentos e as formalidades entre ambos, acrescentando apenas que Alice fez um esforço para não reparar no desdém com que X olha para ela, enquanto avança pelo hall do sumptuoso gabinete – decoração old fashion endinheirada, pensa Alice.
– “Finalmente em carne e osso”, diz sorrindo. “Estou habituado a vê-la apenas na televisão, sempre com um ar seríssimo e muito credível”, acrescenta. “Então, o que a traz por cá? Posso fazer algo por si?”
– “Nada que nos tire o sono a ambos, mas essa pergunta sou eu que a faço. O que quero fazer por si? É muito simples”, acrescenta Alice.
Mr. X abre os olhos de tão surpreendido que fica, mas depois gargalha sonoramente
– “Quanto mais cedo parar de rir, mais tempo tem para me ouvir e para me contratar”, riposta Alice, dando à voz um tom pragmático.
– “Mas o que é que a leva a pensar…” Alice não o deixa sequer concluir a frase.
– “Não interessa, o que eu penso! Quando sair por aquela porta, teremos decidido se vamos trabalhar juntos em São Bento ou não, e neste momento é só isso que interessa. Tenho pouco mais de uma hora para lhe dizer como vamos ganhar esta guerra e, nesta fase sem grandes explicações, usando da melhor maneira todos os media e meios digitais disponíveis. Lá mais para a frente, falaremos, por exemplo, de fake news, de ativismo e movimentos sociais digitais, de comunicação em rede, pensamento reticular e de conhecimento automático. Está de alguma forma familiarizado com alguns destes termos? Veracidade e verdade dizem-lhe alguma coisa?”
Mr. X já não esconde a sua perplexidade, mas Alice percebe que a curiosidade do seu interlocutor se aguça.
– “ Usou alguns termos de que já ouvi falar, mas teria que me dar algum tempo até que consiga dizer algo de concreto em relação a alguns deles.”
– “Pois, esse é um dos nossos principais problemas, não tanto a sua ou a minha falta de tempo, mas a falta de tempo e paciência das pessoas, dos eleitores.” Alice leva o copo de água aos lábios, como se fosse um passarinho e prossegue: “E é por isso que, a partir de hoje, o importante é o que faz, o que diz, aliás, o que conta e como conta, o que veste, os lugares que frequenta e não tanto aquilo que na realidade é, ok? Quantos ecrãs tem em casa, três ou mais? Televisão, iPad e smartphone pelo menos, certo?”
– “Sim, certíssimo, acho que até tenho mais”, responde Mr.X, agora mais calmo.
– “Boa, faz parte da verdadeira sociedade do ecrã. Então, agora imagine que está a ver um político num desses seus ecrãs. O que é que prefere? Vê-lo a jogar golfe, a velejar num barco em Albufeira com a família, vestindo um polo e sapatilhas de marca, num estádio de cachecol a apoiar a selecção nacional de futebol, ou…” – X percebe que a pausa de Alice é intencional – “ouvir um enfadonho e repetitivo discurso, feito de palavras engravatadas?”
Mr. X começa a mostrar-se incomodado e sem capacidade para reagir a tanta informação.
– “Desculpe lá Alice, com todo respeito, isto é uma brincadeira?”
– “Garanto-lhe Mr. X que se fosse brincadeira eu não estaria aqui. Pensei que já tinha percebido que estamos nisto a sério. Tem pelo menos consciência de que somos hoje televisões, rádios, jornais, redes sociais e prosumers ao longo das 24 horas? Que comunicamos como nunca, em rede, que partilhamos, que informamos e informamo-nos e que produzimos informação e conhecimento? Nós somos a rede, o meio é neutro, e confluímos todos para o mesmo local. Não se assuste, que isto parece tudo muito complicado, mas na verdade é muito simples. Só temos que usar bem, diga-se, em nosso proveito, todas as ferramentas que o admirável mundo novo das tecnologias nos oferece.”
– “Sim, acredito, mas espere aí…”
– “ Espero com certeza, mas entretanto guarde esta ideia chave: «hoje tudo existe, a solução é saber procurar para encontrar».”
– “Isto não me está a acontecer, não é possível”, desabafa X.
– “Claro que é possível. Acabei de lhe dizer que tudo existe. Ora, se existe, acontece e, se não acontecer, nós fazemos acontecer. Eu vou pô-lo nos ecrãs e você vai entrar nos ecrãs sem perguntar se pode, já lá está. Vai apropriar-se… são milhares de audiências à sua espera.”
Quase sem respirar, Alice abriu a carteira e tirou uns quantos papéis.
– “ Quando sair, deixo-lhe algumas folhas de matérias interessantes que gostava que lesse. Inteligência colectiva por exemplo, um conceito muito interessante de Pierre Levi, um filósofo e investigador tunisino. Inteligência compartilhada, na verdade nenhum de nós sabe tudo, mas sabemos sempre qualquer coisa sobre algo.”
Escolhe mais duas ou três folhas e, sem levantar a cabeça, continua: ”revolução do conhecimento, a Política Long Tale, conhecimento automático, Herry Jenkins, etc. Tem aqui vários textos muito interessantes e espero que goste de os ler.”
Mr. X mexe-se ligeiramente na cadeira. “Se eu contar isto a alguém, internam-me na hora! Ou então estou para aqui metido num reality show e ainda não percebi.”
Pela primeira vez, Alice revela algum incómodo. “Acha mesmo? Mr. X, a vida é definitivamente um jogo, os reality show já são passado, de um tempo que já não existe. Agora as estrelas, o centro, somos nós. Fazemos parte, fazemos acontecer, produzimos: somos globais. Bem-vindo à gamificação da vida. Lá mais para a frente, havemos de falar um pouco das caixas pretas. Não as dos aviões, obviamente. E já agora, politeinment. Já ouviu falar da política espectáculo?”
– “Sim, acho que sim”, respondeu Mr. X aliviado, “o Marcelo leva a política espectáculo muito a sério, certo?”
– “Certíssimo, mas não descobriu nada de novo. Em 1960, o jovem John F. Kennedy percebeu muito bem a força da televisão e, no mítico debate televisivo desse ano, venceu as eleições antes de estas acontecerem. E sabe o que disse o derrotado Nixon no final do debate?” – acrescentou Alice – “que nunca devemos desprezar a opinião do nosso produtor. Se quiser, olhe para mim como a sua futura produtora”.
– “Tudo muito certo Alice, mas não leve a mal a pergunta, até porque a considero uma das melhores jornalistas nacionais. Você está bem da cabeça, está tudo bem consigo?”
– “ Nunca estive tão bem, Mr. X, tão certa como saber que apesar de ser um empresário muito bem-sucedido é também suficientemente altruísta para achar que, através da política, pode melhorar a vida das pessoas.”
– “Sim, é verdade. É impossível não olhar para o grande exemplo que foi o meu avô.”
– “Começa a estar no local certo. Antes de ser eleito primeiro-ministro nas próximas legislativas, vou fazer de si o rei da social media.”
– “Seja lá o que isso for”, diz Mr. X, mostrando que também sabe rir.” Alice, eu não me considero uma pessoa inculta, mas gostava que me explicasse, por exemplo, como é que me irá pôr a falar de religião ou mesmo de política internacional, por exemplo?”
É a vez de Alice sorrir.
– ”Não tem que falar. Porque se falar, ninguém o vai querer ouvir. Hoje, contam-se histórias. Storytelling já ouviu falar? Não há outra forma de o fazer. Se não for assim, ninguém liga ao que dizemos. A convergência das coisas e das ideias acontece nos cérebros das pessoas, com as suas interacções sociais nas redes e fora delas. Esqueça os assuntos sérios se não tiverem uma vertente narrativa. Acha que as obras da Paula Rêgo são simples pinturas? Porque é que ainda hoje se lembra do Feiticeiro de Oz, do Capuchinho Vermelho ou do Peter Pan, por exemplo?”
– “Nunca tinha pensado nisso dessa forma”, responde um surpreendido Mr. X.
– “Acredito! Mas é mais simples se pensar que até ontem todos tínhamos uma história. Com as possibilidades que hoje as novas tecnologias nos oferecem, hoje ‘nós’ somos a história. Num desses textos que lhe deixei está um belíssimo artigo do norte-americano Henry Jenkins: de leitura obrigatória, ok? O navegador Fernão de Magalhães circum-navegou o mundo em 1519, facto que é ainda hoje considerado um feito histórico, mas as novas ferramentas, as novas tecnologias chegaram e impuseram uma espécie de realidade líquida: uma verdadeira ausência de fronteiras e até de espaço. E, por incrível que lhe possa parecer, hoje podemos até redefinir a viagem de Fernão de Magalhães. Também lhe vou mandar alguns artigos do fantástico Bauman para perceber melhor do que estamos a falar.”
X olha para o relógio,
-“Estamos a conversar há 42 minutos”, diz Alice.
– “A conversar?”, questiona X, “Você sim, está a conversar, mas eu estou apenas a tentar assimilar alguma coisa do tanto que já me disse. Se é que isto está mesmo a acontecer…”
– “ Se não está a acontecer, já lhe disse há pouco: fazemos acontecer”.
– “ Bem, tenho 15 minutos para lhe deixar meia dúzia de ideias e gostava que reflectisse um pouco sobre elas até ao nosso próximo encontro. Desde logo que o futuro é hoje e é em rede, que quem faz a rede somos todos nós e, por isso, a internet e as redes sociais instalaram-se ou, se quiser, invadiram-nos e para ficar. As pessoas que o vão eleger já não concebem o mundo sem a vida online e você, Mr. X, tem que estar sempre presente. O fenómeno Marcelo comparado com o que vou fazer consigo será coisa do passado. A partir de hoje, as redes sociais vão ser as suas ágoras gregas. É lá que os eleitores estão, é lá que eles o querem ouvir: a si e às suas histórias. A mobilização faz-se entre a rua e a rede. O candidato X vai pensar a democracia à imagem das redes sociais. De maneira a que o impacto desta nos vários sectores da sociedade seja tão forte quanto foi e está a ser a chegada das novas ferramentas.”
– “Mas, então, diga-me uma coisa, Alice… A Internet é ou não democrata?”
– “A internet é obviamente democrata, Mr. X, porque permite e até promove a discordância. Por isso, ela é uma ameaça para muitos líderes e, ao mesmo tempo, uma oportunidade para muitos outros, ok?”
– “Com certeza, minha futura produtora!”
– “Mr. X, desde sempre que conhecimento é poder. Imagina como cheguei até si?”
-“Não faço a mínima ideia.”
– “Não se assuste, mas foram os algoritmos que me trouxeram aqui. No fundo, você foi escolhido, mas ainda não sabia.”
– “Tudo bem. Se o diz, nem vou contestar.”
– “Entrei no seu gabinete há precisamente uma hora e cinco minutos. Tenho que sair. Uma última ideia para o caso de ter ficado muito assustado: a grande maioria das pessoas não tem literacia mediática digital, nem sequer sabe que isso existe.”
– “Acredito que sim, mas e os mais jovens? Quando eu meter os pés pelas mãos?”
-“Já ouviu falar em fake news, conteúdos positivos, palavras tagadas, programas de humor na Televisão e na Rádio? Há todo um admirável mundo novo na forma de hoje fazer política. Mr. X, ganha quem souber manusear melhor o que as novas tecnologias proporcionam. Sabe que nas últimas eleições no Brasil, a equipa de um dos candidatos gastou durante a campanha cerca de 30 milhões de reais, mais ou menos 6 milhões de euros, para recrutar e formar uma milícia de 90 mil militantes só para estarem activos nas redes sociais?“
Alice olha para o relógio de Mr. X e diz-lhe: “A política é um negócio, Mr. X, e os algoritmos são hoje a alma do negócio. Bem, terminou o nosso tempo por hoje, obrigado por me ter recebido. Não se esqueça de reflectir um pouco sobre os últimos tópicos da nossa conversa e não deixe de ler esses textos.”
Alice levanta-se, estende a mão a Mr. X e encaminha-se para a porta. Sem olhar para trás, diz tranquilamente: “Segunda-feira estarei de volta, mas às 9:00h da manhã.”
Já com metade do corpo para lá da porta do gabinete, Alice adopta um ar curioso e pergunta: “gosta de botânica, Mr. X?”
– “Mais uma pergunta estranha, meu Deus. Mas sim, gosto. Tenho plantas em casa”, acrescenta.
– “Ainda bem, a partir de segunda-feira passa a chamar-se Rizoma, ok?”
– “Rizoma?”
-“Bom fim de semana, Mr. X!”