Mais importante do que o casamento civil ou religioso, o alembamento tem o peso da tradição. Em Angola, é visto como uma cerimónia fundamental: alembamento é a entrega dos dotes exigidos pela família da noiva à família do noivo.
Panos africanos, carta de pedido, dote e presentes simbólicos definem o casamento tradicional africano. Em Angola, o alembamento vai muito além de anel no dedo, muito além de um joelho dobrado apoiado no chão. É um enlace de grande importância, uma vez que enaltece a família e é visto como o ‘pilar’ da felicidade.
“Alembamento é um costume tradicional ou casamento tradicional que consiste na celebração de uma cerimónia em que o homem se torna esposo da mulher, mediante rituais, tendo em conta os costumes regionais”, diz Melo Mendes, aluno do mestrado em Direito Constitucional, na Universidade Autónoma de Lisboa.
Hoje, há certas mudanças neste casamento típico angolano, o que leva muitas vezes a confundir alembamento com pedido de casamento. Jobe José, bancário de 36 anos, explica essa diferença: “Alembamento é uma exigência que os familiares fazem. Existe uma lista da família da noiva, onde são exigidas certas coisas como fatos, bebidas, calçado, até mesmo galinhas, se for preciso. O pedido consiste numa apresentação, onde se pede consentimento para casar.”
Melo Mendes, embora muito jovem, encontra-se já no terceiro alembamento. “A primeira vez, teve mesmo que ser. A rapariga engravidou e fui obrigado a fazer alembamento, porque a tradição assim o exige…” ‘Pular à janela’ é o termo que se usa quando a rapariga engravida antes do casamento. Nestes casos, é atribuída uma multa por parte da família da jovem à família do rapaz. Em Angola, em 90 por cento dos casos de gravidez é exigido alembamento.
O pedido
Rui Ramos, 34 anos, licenciado em Psicologia Organizacional, deu recentemente este passo. Actualmente vive em Lisboa com Marcelina Ramos, de 28 anos, licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais e recentemente mestre em Globalização e Ambiente.
“Sendo africano, tinha que preencher todos os requisitos que tem o casamento como ponto mais alto da vida, neste caso o pedido”, diz Rui Ramos. O psicólogo reforça a ideia de alembamento de forma bastante coerente: “O alembamento é, acima de tudo, respeitar a tradição para abençoar a união. Alembamento é a raiz e o pedido é o caule. Normalmente, nos centros urbanos, não há grande aceitação ou tolerância para com o que é tradicional. Tudo que é tradicional tem por origem e como origem o interior, o que é rural, tem o seu ícone nos sobas. Para mim, alembamento é uma manifestação social e rural. Mesmo no alembamento, há características que encontramos no pedido. Daí considerar que o pedido é uma extensão moderna do alembamento. Pedido é algo urbano, algo dos centros, das pessoas que viajam, das pessoas que têm acesso a outros mundos. ”
Rui e “Celma”, como é conhecida a noiva, encontraram alguns obstáculos para a concretização do alembamento, uma vez que ambos vivem em Portugal e a maioria dos familiares em Angola. “A família queria que tudo se realizasse em Luanda só que, para nós, não convinha, porque chegámos a Lisboa em tenra idade. As nossas raízes, em termos de identificação, companheirismo, pessoas mais chegadas, estão aqui. O que temos em Angola é só mesmo o respeito pelo conceito da palavra ‘família’. O pedido, por uma questão tradicional e de respeito, é uma comemoração para a família, os noivos não têm voz, não têm ideias, não têm vontades, tudo é como eles querem. Fez todo sentido que o pedido fosse em Luanda e o casamento em Lisboa.”
Rui e Celma são de regiões diferentes. Rui é da parte Sul de Angola e Celma do Norte, região bacongo. Para o noivo, era uma situação inédita, com muita novidade à mistura. Os dias aproximavam-se e os nervos tomavam conta dele. Houve necessidade de uma reunião, a fim de conhecer melhor todos os pormenores, para que nada corresse mal. Como em todos os “pedidos”, existe uma conversa prévia com os familiares de ambos. Por norma, os tios mais velhos servem de intermediários. É nesta altura que surge a “carta do pedido”.
A carta
A carta é feita recorrendo a uma “carta modelo” vendida em Angola, na qual se resumem as intenções do noivo. É com esta que se inicia o procedimento da conversa em reunião. A carta deve ser envolvida num lenço branco e fechada com um alfinete, registando assim a sua pureza. Geralmente, é feita e assinada pelo representante ou o tio mais velho do noivo.
Rui Ramos ressalta que, “no caso específico bacongo, é uma grande falta de respeito ser assinada pelo noivo, porque não é o noivo que se dirige ao tio da noiva, o representante é que tem que assinar a carta”. Por falta de “conhecimento “, já que ambos são de regiões diferentes de Angola, a família do noivo procedeu de forma “errada”. A carta em questão foi assinada pelo noivo. Erros como este são considerados inadmissíveis para as famílias bacongo e, quando tal acontece, é atribuída uma multa de valor simbólico aos familiares.
“Foi pedida compreensão por parte dos meus familiares. Foi uma falha por falta de conhecimento, eles entenderam, mas houve uma multa no valor de 35 €. A carta foi aceite e corrigida na altura. Quando se aceita a carta já é um prenúncio bastante positivo, desde que se cumpra com o resto, com o que está escrito na carta.”
A carta é sempre acompanhada de uma lista de pedidos e de um valor monetário.
Jobe José revela: “Foi algo muito simples. Meti mil dólares na carta, já que não é estipulado um valor, depende muito do valor que o homem dá pela noiva. É uma forma de agradecimento e respeito pela família que a criou. Normalmente, esse dinheiro também é partilhado com os tios pelos serviços prestados, já que servem de intermediários.”
A lista de pedidos (ou a factura) é uma exigência da família da noiva. Consiste numa lista elaborada pelos tios, na qual consta uma relação de coisas que o noivo deve comprar para a família da noiva. Entre os elementos fundamentais da lista contam-se volumes de cigarros, caixas de fósforos, panos holandeses (devido à sua qualidade), dinheiro, fatos, calçado e bebidas.
O ato de alembamento
São estendidos panos africanos (panos do kongo) no local da cerimónia para a receção do noivo, uma espécie de passadeira. Antes da sua entrada, são depositados valores em dinheiro (geralmente notas) pela família do noivo.
Ao entrar, o noivo é cercado pelas tias da noiva, que fazem um serviço de preparação, como se de um rei se tratasse. Limpam-lhe os sapatos, arranjam-lhe o fato, limpam-lhe o suor da testa e carregam-no ao colo (um ritual especialmente desempenhado em famílias bacongo).
Já na sala de reunião, do lado direito, a família do noivo; do lado esquerdo, a família da noiva. Em frente e ao centro, numa espécie de altar, duas cadeiras para os noivos. Inicia-se a cerimónia com base na carta do pedido.
O moderador da família da noiva inicia a cerimónia, apresentando todos os familiares que o acompanham. De seguida, dá a palavra ao orador da parte do jovem, que também procede à apresentação de quem o acompanha.
Durante todo este processo a noiva nunca está presente, só aparece se as famílias chegarem a acordo. Estando todos de acordo, é analisada a lista para averiguar se tudo o que foi pedido está correto. Tudo o que foi pedido deve ser envolvido em panos africanos.
“Posto isto, passamos para o próximo passo: o local e data de casamento. Este momento é caracterizado por pânico, ansiedade, não pode ser algo muito informal…”, explica Rui.
É altura do noivo “exigir” a noiva. Mesmo neste momento, ainda são “cobrados” alguns valores, como o transporte ou algum “agrado” para a tia que traz a noiva. Quando esta aparece, vem toda envolta num pano.
“Há situações em que vêm duas ou mais raparigas para o noivo descobrir qual delas é a futura esposa. Se errar, paga multa. Depois desse processo, os oradores dão as bênçãos aos noivos e apresenta-se a aliança.” Depois do protocolo de cumprimentos, dá-se início à festa comemorativa.
A realização da festa varia de região para região mas, apesar de diferentes, formam um só costume. A crença faz com que grande parte do povo angolano prossiga com a tradição, apesar de algumas mudanças.
Melo Mendes explica que “é muito raro casar sem alembamento. O casamento pode não durar, há casos até mesmo de morte dos filhos, caso não se faça”. Sendo assim, o povo crente prefere não arriscar e cumpre a tradição. Até mesmo quando não se prossegue com o casamento, optam pela devolução dos bens pedidos em alembamento.
A sociedade angolana (e, em especial, a camada mais jovem) reconhece a importância deste ritual. Emocionado, Rui confessa: “Viver aquele momento é como estar no purgatório e conquistar o lugar para o paraíso. Sinto-me um homem diferente.”
O UALMedia agradece a Rui Ramos a cedência das fotografias que ilustram esta peça.
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular de Técnicas Redactoriais II da licenciatura em Ciências da Comunicação.
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