Milhares de animais perderam a vida nos incêndios de 2017. De espécies selvagens ou de pecuária a animais de companhia, o verdadeiro número dos que sucumbiram entre as chamas é incalculável. Sem o apoio necessário do Estado, têm sido as organizações não-governamentais a moverem esforços para salvar estas vítimas esquecidas.
As imagens de animais calcinados nos campos ou que morreram nos currais e outros lugares de resguardo divulgadas nos media transmitem a dimensão do horror dos incêndios de 2017. Ninguém esquece a fotografia tocante de uma raposa selvagem que, perdida e faminta, veio comer à mão de um bombeiro; a história, relatada nas redes sociais, de um cão pastor que ficou para trás e que o dono julgava morto. Em vez disso, foi encontrado com vida junto à casa queimada, sujo e cansado, ao lado das cabras e das ovelhas que conseguiu salvar pelos trilhos que conhecia.
As histórias destes heróis ficaram por contar, na comunicação social. Morreram centenas de animais, sobreviveram alguns, muitos deles ficaram feridos. Dos que sobreviveram, parte ainda irá morrer em consequência dos incêndios. Morrem de fome, de desidratação e ficam mais susceptíveis a serem atropelados por estarem fracos e desorientados. Perderam o seu habitat e fontes de alimentação. O que resta para estes seres são os solos secos e queimados e as águas contaminadas pelas cinzas. Grande parte dos animais domésticos que morreu servia de sustento a muitas famílias. Produtores ficaram sem bovinos, suínos, caprinos, ovinos e aves.
Também dezenas de animais de estimação não conseguiram salvar-se. Foram dados alertas aos proprietários para os soltar, de modo a que conseguissem escapar das chamas, mas o fogo estava por todo o lado e encurralou os que tentavam escapar. A inalação do fumo era o suficiente para dar baixa dos animais, fechando as vias respiratórias, alguns morriam muito antes de as chamas lhes tocarem no pêlo.
Quem socorre os animais
Os bombeiros têm uma hierarquia no que toca de socorrer vítimas. Primeiro salvam-se as vidas humanas, depois os animais domésticos e a seguir as casas. No entanto, a falta de bombeiros impossibilitou que muitos dos animais tivessem sido salvos.
O CERAS, Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Castelo Branco, da Quercus, foi a salvação de grande parte dos animais vítimas dos incêndios. É um dos sete organismos que existem em Portugal para resgatar e cuidar da fauna silvestre. A sua ajuda foi fundamental para salvar muitos exemplares de inúmeras espécies selvagens. Este centro foi criado em 1998 e tem como objetivo tratar os animais feridos que, depois de recuperados, são devolvidos aos seus habitats naturais. A recuperação dos animais tem como finalidade contribuir para a conservação da Natureza, sendo dada prioridade a animais de espécies ameaçadas. Desta forma, os centros constituem também uma fonte importante de informação permanente sobre os fatores de ameaça às populações de fauna. Paralelamente, são realizados estudos relativos à biologia das espécies e contam com programas de reprodução em cativeiro, acções de educação ambiental e acções de formação.
O centro atua em instalações cedidas pela Escola Superior Agrária de Castelo Branco e abrange a área dos distritos de Santarém, Castelo Branco, Guarda, Portalegre e uma grande parte de Coimbra e Leiria. Filipa Lopes, médica veterinária do CERAS, revela que, no ano anterior, receberam mais animais do que é costume. Num ano normal, recebem 200 animais e, em 2017, esse número foi ultrapassado tendo recebido mais de 350.
Filipa Lopes refere que “o maior afluxo de animais a ingressar no CERAS começou a fazer-se sentir mesmo antes dos incêndios se deflagrarem. “Acreditamos mesmo que a principal razão por este aumento tão acentuado é a seca que atravessamos, da qual os animais selvagens começaram a ressentir-se bem antes dos meios de comunicação começarem a abordar o tema”, justifica.
Mochos, cegonhas, águias, raposas, esquilos, grifos, abutres, tartarugas, veados, lobos e linces foram algumas das espécies que entraram no CERAS. Alguns destes animais encontram-se em vias de extinção. Os casos mais preocupantes foram “sem dúvida, a águia-imperial-ibérica que entrou muito debilitada e com golpe de calor no final de junho, mas também os açores, milhafres-reais e noitibós”. A águia-imperial-Ibérica é uma das rapinas mais raras do mundo: “Na região de Castelo Branco, destacamos as colónias de aves necrófagas, como o abutre-preto ou o grifo.”
Com tanta afluência de animais em risco de vida, a médica veterinária diz que “é quase como se fosse um jogo de tetris tentar colocar todos os animais em instalações apropriadas para a espécie e com os requisitos de cada fase de recuperação”. Os apoios nunca são de mais e as instalações nem sempre são apropriadas às necessidades dos animais. “Os recursos financeiros são escassos e existem falta de instalações. Por exemplo, algumas infraestruturas exteriores, onde testamos a capacidade de voo e de caça, tiveram constantemente uma ‘lista de espera”, aponta. A maior dificuldade é, continua, “a falta de recursos humanos, uma vez que o CERAS conta com uma só funcionária, médica-veterinária. Felizmente, têm recebido vários voluntários dedicados e incansáveis que são o motor do centro e tornam todo o trabalho possível”.
A comida e os medicamentos são a maior despesa do CERAS. Sem receberem qualquer ajuda do Estado, o único apoio que têm é fornecido pelo Instituto Politécnico de Castelo Branco, que cobre as faturas da luz e da água. Outros apoios que recebem partem da população: “Este verão, as pessoas apoiaram fortemente o CERAS, seja através de apadrinhamentos, donativos em dinheiro e em géneros, voluntariado e mensagens de apoio.” Quem pretender contribuir para ajudar a recuperação dos animais, a Quercus lançou, nos três centros geridos pela associação ambientalista, a iniciativa de apadrinhamento de diferentes espécies acessível a qualquer cidadão. O valor a depositar difere em função da espécie. Além de poder assistir à libertação, quem financiar um dos exemplares em convalescença recebe fotografias e notícias da evolução do estado de saúde do “afilhado”.
A taxa de recuperação do CERAS está nos 60%, enquanto em centros semelhantes, como por exemplo em Espanha, ronda os 40%. Os números só por si mostram o sucesso deste centro e dos que lá trabalham, como o ambientalista Samuel Infante, que foi um dos heróis dos incêndios, como noticiou um especial da revista Visão.
As ajudas governamentais
Sempre que ocorrem fogos, são mobilizadas equipas para restabelecer as condições mínimas para o normal funcionamento da sociedade. No entanto, quanto aos animais, verifica-se uma quase absoluta inércia estatal, sendo todo o trabalho de proteção e salvamento de animais assegurado não raras vezes pelas organizações não-governamentais e mesmo pelas populações locais. Recentemente, o PAN (Partido dos Animais e da Natureza) apresentou uma proposta para ajudar os animais. O PAN propôs em sede de Orçamento do Estado que o Governo procedesse à criação de uma unidade de salvação e resgate animal, composta por várias equipas que incluíssem médicos veterinários na estrutura, a qual seria integrada na Autoridade Nacional de Proteção Civil. Porém, esta proposta foi rejeitada pelo PSD, PS E CDS.
Em declarações à Imprensa, o ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, Luís Capoulas Santos, assegurou que “o Governo deu resposta à alimentação dos animais das explorações afetadas pelos incêndios de 15 de outubro através da criação de cinco plataformas logísticas, as quais foram instaladas nos municípios de Monção, Tondela, Vagos, Vila Nova de Poiares e Gouveia”.
Alguns animais, como as espécies bovinas, ovinas, caprinas e equídeos, tiveram também alguns apoios monetários. A antiga ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, decidiu acionar a Conta de Emergência do Ministério para fazer face aos danos nas unidades de exploração económica, de modo a garantir a alimentação de muitos animais. A destruição dos pastos obrigou a que a alimentação fosse assegurada pela aquisição de alimentos do mercado.
Para além destes apoios, o Governo tomou outras medidas para minimizar a extinção dos animais. Através de diretrizes divulgadas pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), a caça foi reduzida e até proibida nas zonas afetadas pelos incêndios, de modo a recuperar do número de espécies perdidas, muitas das quais já se encontravam em vias de extinção. As medidas incluem a interdição absoluta da caça em todo o perímetro de grandes incêndios, acima de mil hectares, e da caça sedentária nos concelhos onde arderam mais de 50% da área.
Nos distritos mais afetados foi reduzido o número de dias de caça às espécies migratórias, de três para dois. Destes dias, um será domingo, o outro as associações de caçadores têm a liberdade de determinar. No caso das associações que tomarem a decisão de não caçar, é lhes concedida a isenção do pagamento de taxas ICNF.
Medidas de prevenção de tragédias
Paulo Alves, biólogo do Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Castelo Branco, entende que “é um erro pensar que o cenário de incêndio florestal não se vai repetir em Portugal, devido ao clima e às características da nossa flora”. E justifica: “Temos é que nos mentalizar que a melhor forma de agir é aprender a conviver com o fogo e o que podemos fazer para que sejam menos intensos, de mais fácil combate e facilitar a regeneração após incêndio.”
Algumas medidas, quando devidamente incrementadas, podem prevenir que os incêndios sejam tão catastróficos. Entre as mudanças mais importantes está, considera o biólogo, a “redução das áreas de monocultura (pinhais, eucaliptais, intercalando com folhosas caducifólias, como os carvalhos, faias ou castanheiros que ardem mais lentamente facilitando o combate aos incêndios”.
Outra medida que devia ser posta em prática é a silvicultura preventiva. Trata-se, como explica, “de remoção de sub-bosque, desrama e desbaste para reduzir a quantidade de combustível e a intensidade do incêndio. Desta forma, não se impede o incêndio, mas a intensidade é mais reduzida, o que eleva a taxa de sobrevivência das árvores codominantes e dominantes”. Segundo Paulo Alves, “o uso de fogo controlado (gradagem ou escarificação) para a redução de combustível no subcoberto florestal é umas das medidas mais importantes”.
O biólogo defende que deviam incentivar as populações a voltar ao Interior, uma vez que o êxodo rural é uma das principais razões de tantos incêndios no País. “O aumento do abandono dos campos e o número de terras abandonadas têm como consequência o crescimento de combustível e diminuição do pastoreio, o que resulta numa elevada área florestal e não florestal sem gestão alguma.” Perante os parcos meios dos proprietários, muitos envelhecidos, o especialista considera que “a única forma de evitar esta situação era existir subsídios para limpeza florestal, cadastro dos terrenos e faixas desmatadas adjacentes aos caminhos florestais, casas e estradas”.