Uma vez passeava de barco num dos canais da cidade de Utreque e, a alguns metros de mim, percebi que dois barcos iriam inevitavelmente colidir. A velocidade e a direcção em que ambas as embarcações seguiam tornava inevitável o choque. E aconteceu. No entanto, durante aqueles breves instantes que antecederam o embate, fui invadido pela conhecida sensação de quem não consegue acreditar no que está a ver. Foi como se agora desse com Theresa May encostada à nespereira do meu pátio a fumar erva.
Para acreditar não basta que as coisas possam ter ou não sentido, é necessário sobretudo que quem acredita sinta na mão o leme que não é o seu e o articule com o desejo. Isto é, quando acredito, desdobro-me (no ‘outro’ ou em ‘outrem’) e logo regresso ao meu próprio encontro. Um ‘boomerang’ que decorre num ápice, a maior parte das vezes de modo involuntário. Naquele dia, em Utreque, eu não consegui rever-me na quilha das embarcações que iriam embater entre si e o meu desejo, parece, estava longe de acompanhar o arroubo do contratempo.
As propósito destes vaivéns, verdadeiros anjos da guarda que nos colam ou descolam da vida, soube, na passada semana, de um caso particularmente interessante: uma amiga minha recebeu em casa um livro de poesia acabadinho de vir da gráfica e o filho, com doze anos de idade, agarrou no livro, folheou-o de ponta a ponta e inquiriu: “Ó mãe, foste mesmo tu que escreveste isto, ou viste na net?”. O rapaz também não queria acreditar na colisão de Utreque e muito menos na desenxabida aparição de Theresa May.
Aproveitemos a concordância para permanecer em Utreque, cidade a que costumava chegar de comboio, todas as manhãs, durante alguns anos. Relembro ainda que a palavra holandesa “beeldenstorm” significa literalmente “tempestade de imagens”, mas, na realidade, é utilizada no dia-a-dia para designar a guerra contra as imagens que começou em 1566 e que se estendeu à região de Utreque no verão de 1580. A revolta levou o poder protestante a cortar cabeças de santos em diversas esculturas da catedral do Dom. Uma iconoclastia anti-católica que deixa ainda hoje à mostra, na capela Van Arkel, superfícies rasas e brancas por cima dos pescoços das imagens. A primeira vez que vi aquelas decapitações nem queria acreditar. Eu estava como o rapaz de doze anos, que se chama Duarte, mas sem qualquer net para poder atribuir a autoria de tais sórdidos actos.
Os iconoclastas daqueles tempos praticavam actos à talibã, porque a coisa rimava com fé. Uma pessoa, quando crê, não se imagina a desdobrar-se ou a desejar seja lá o que for; apenas disfere, dispara, investe. Nem interessa em que direcção, pois, de um lado, o mundo é negro e do outro torna-se logo redentor. Coisa perigosa. Crer é bem distinto de acreditar, acreditem-me. Se não vejamos: no início deste ano, num famoso museu de Manchester, a direcção achou por bem retirar da exposição um quadro de William Waterhouse, intitulado ‘Hilas e as Ninfas’ (1896). O ‘pecado’, aparentemente, não se baseava em questões de fé, nem teria resultado da faina de possíveis plágios. O que estava em causa era a “forma decorativa passiva” com que as mulheres haviam sido registadas pelo pintor vitoriano (que deveria sofrer de patologia contemplativa). Para que não se pensasse que o arrojo pudesse ter conotações de crença talibã, a curadoria do museu comunicou publicamente a iniciativa iconoclasta como se fosse, ela mesma, uma obra de arte. Eu nem queria acreditar e fiquei com dúvidas, se foi o curador que teve a ideia, ou se ‘viu aquilo na net’.
Entendamo-nos: “ver na net” quer dizer, no nosso tempo, bem mais do que copiar ou do que cumprir uma simples moda ou ensinamento. “Ver na net” significa essencialmente viver, respirar e até acreditar. Num caso limite, implicará “crer”, separar, disferir. “Ver na net” é imitar tendências e fazê-lo cegamente e em fluxo: repetir, reverberar, reiniciar. A perífrase “Ver na net” estará mais em linha com um certo modo de rectifcar o mundo, tornando-o mais ‘correcto’. Como se fosse um imenso shopping digital em que tudo se expõe de uma maneira formatada, precisa, higiénica.
Há uma proto-ideologia em crescimento no planeta, de que um pós-‘millenial’ como o Duarte dá conta que nem peixe na água, que nos diz que as embarcações de Utreque vão mesmo embater uma na outra. Iremos ainda, um dia destes, ver quadros de Picasso retirados dos museus, azulejos taurinos recolhidos das estações da CP e pinturas de batalhas famosas irradiadas dos salões. Iremos ainda ver um mundo sem autoria seja de quem for, mas todo ele esquematizado, denunciado e sem qualquer ironia (com excepção para aquela menina que faz os anúncios da Trivago).
As mãos que arrasaram as esculturas de Gerrit Splintersz na catedral de Utreque e as mãos que privaram um museu de Manchester do quadro de William Waterhouse têm em comum um ideal de pureza. Mas uma pureza que exclui a conhecida sensação de não conseguir acreditar no que se está a ver. Banhados por esse brilho de pureza, ver torna-se sinónimo de crer. Coisa perigosa. Quer no devir protestante, quer no devir da correcção ‘millenial’, a realidade é uma plasticina criada pela re-arrumação permanente de bits (antes designados através do fogoso ímpeto do ‘espírito santo’).
E já se sabe que, no tempo digital, uma simples imagem numérica, não analógica, livre de referentes e apenas subordinada à linguagem que a gera, decompõe ou programa… pode fazer de cada um de nós um iconoclasta em potência, ou até, no limite, um internauta com claras inclinações talibãs. Afinal de contas, o Duarte tinha razão: está tudo na net.