Os seres humanos não conseguem lucubrar sobre tudo. Há limites. É por isso que existe a poesia, é por isso que se criaram as religiões, é por isso que houve necessidade de se inventar a filosofia e outros modos de perceber e de questionar.
Imaginemos, no entanto, uma peça de teatro em que o princípio activo fosse esse: dez ou vinte personagens em cena a falarem sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo. Seria uma coreografia sobre o que não existe, uma verdadeira panóplia para loucos, na medida em que “tudo” não passa de um pronome indefinido e invariável, logo algo que faz pela vida apenas na imaginação das pessoas e não na realidade, digamos, tangível (Shakesepeare jamais podia ter comparado a linha avançada do West Ham com a do Leicester).
O normal – sim, falemos de coisas normais – é a existência de escolhas, de opções, de alinhamentos (como escreveu o semiótico dinamarquês L. Hjlemslev, os humanos recortam do continuum as suas opções, embora esse recorte obedeça a linhas de resistência, tal como os pintores na pré-história permitiam que os seus traços se orientassem pelas linhas da rocha). Ao escolhermos, a nossa soberania é sempre uma soberania orientada, prescrita, definida.
Durante praticamente toda a história dos humanos, as proibições facilitaram as escolhas possíveis. Sempre foi proibido falar de muitas coisas, por razões políticas, espirituais, históricas, tabus, etc, etc. No ocidente moderno, a ideia de liberdade (enquanto possibilidade) foi, entretanto, escrevendo a sua própria história. E o que sempre limitou a liberdade acabou, também, por ser o que melhor a caracteriza.
Hoje em dia, sentimo-nos livres quando se designa por agenda aquilo de que se fala. A agenda é a sucedânea das antigas linhas da rocha que orientavam os pintores pré-históricos. A agenda é o novo sinaleiro tectónico que nos diz sobre o que lucubrar e quando.
A agenda selecciona alguns tópicos que se vão abrindo e fechando ao longo dos dias. Esses tópicos surgem com o formato das ondas: erguem-se no alto, rebentam, espumam (por vezes muito) e logo desaparecem. O vestígio e a patine que ficam deste exercício são constituídos por gases raros. Um nada que se forma como uma nuvem de Verão: chamemos-lhe memória (ou o que dela ainda resta).
Quase tudo o que a agenda viabilizava há 24 ou há 36 meses já não existe hoje no debate diário. Do mesmo modo que a agenda dos últimos dias, tão vociferada nos teclados, irá em breve esvair-se. Perdemos o dom da ritualização e adquirimos o propósito do fluxo. Estou a referir-me ao escritor que disse que não se atirava a mulheres com mais de 50 anos, às expectativas dos estudos ambientais em torno do aeroporto do Montijo, às vicissitudes do muro de Trump, às entrevistas a fascistas na TV, à rapariga saudita em fuga pelo sudeste asiático, às greves de sectores da função (naturalmente) pública, aos políticos na justiça dando a ideia de que são perseguidos, aos pobres globos de ouro, à vaga de gripe, aos treinadores de futebol que saem e que entram, aos migrantes sem porto para desembarcarem e à Tesla que se está a instalar em Xangai.
Os tópicos da agenda começam geralmente por um facto e, depois, inflamam, degeneram e tornam-se em ziguezagues palavrosos que se acirram. Mais de noventa e cinco por cento das pessoas que ‘dão opinião’ (nesse novo polígrafo do julgamento divino chamado redes sociais) é o que fazem: pescam um tema da agenda e depois assanham-se, inebriam-se ou registam aquilo que imaginam advogar como se fosse algo único, ímpar, fundador do mundo. Virada a página do dia ou da semana, é como brincar às escondidas: lá se removeu todo o miolo da convicção, lá se foi toda a massa do pão da madrugada passada para que possa amassar sempre a do dia seguinte.
Na verdade, nunca ninguém está presente. O vazio da véspera é o já o vazio do próprio dia. Razão pela qual o ‘feed’ das redes sociais é um fio-de-prumo sem qualquer arquitectura para habitar. E o mais maravilhoso é que a nossa era vive precisamente desta beleza sideral: o que não faz parte, nem nunca fará da agenda (aquilo para onde ninguém olha, por outras palavras) é o que melhor a definirá. Da mesma maneira que a fotografia se pode definir, nos nossos dias, como aquilo que ainda não foi fotografado, tal é a hemorragia com que as imagens, sendo o que são, se estão a transformar em coisa nenhuma (um ‘sample’ que é repetido até ao torpor). Não deixa de ser verdade meus amigos: a fotografia é aquela parte de mim ainda por fotografar.
Sabendo que, na verdade, nunca ninguém está presente, pergunto-me, por vezes, por que razão continuo ainda a pagar a assinatura do cabo, já que em todos os canais, com raras excepções (mesmo na, por muitos adorada, neflix), se vê sempre o mesmo filme. A agenda é matreira e consegue espalhar eflúvios de aparente felicidade nos povos do globo! Mas eu sei por que continuo a pagar: tenho que estar dentro da rede, nos calores da infosfera. Fora da gruta, ‘liberto’ das opções impostas, eu seria um desalojado e sentiria graves problemas de sobrevivência. As presas de caça dos neandartais são hoje megas gigas teras petas. Assim é. Pouco mudámos, já se vê.
Assim é. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que conseguimos falar sobre tudo e sobre nada, ao mesmo tempo. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que está tudo à nossa mão e de que somos livres a fazer as nossas opções. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que é ‘bluff’ pensar numa agenda que nos tende a escravizar.
Os novos escravos têm diante de si o espelho e o teclado da normalidade e deixam o seu traço no mundo, interiorizando a ideia de que são os personagens mais autónomos do planisfério. Por vezes usam maiúsculas, repetem clichés, imaginam-se na ponta do charuto de Churchill e cantam fora da banheira como se fossem Plácido Domingo. Ao fundo da rua, ouço tantas, tantas vezes Nietzsche a rir à gargalhada.