Há já mais de dois séculos que os jornais se habituaram a preencher diariamente um conjunto de páginas originalmente em branco. Tendo em conta certos critérios, diagnosticam o país (ou o local) onde vivem e atribuem o grau de notícia a alguns acontecimentos que aí ocorrem. Com o tempo, aditaram a essa amálgama ritual outros registos, tais como reportagem, opinião, efemérides, ludemas e outras rubricas que se viriam a consolidar.
Nos últimos dez anos, talvez por mimetismo próprio da espécie, as pessoas comuns passaram a fazer precisamente o mesmo nas redes sociais, entendendo-se a si como países, partes do mundo ou até como o mundo todo. Os ‘posts’ tornaram-se em notícias de um ‘eu’ que hasteia toda a latitude do cosmos. Fotografa-se a celebrar a existência, dá a ver familiares em descontinuada operação lol, exibe efemérides como se toda a gente delas se lembrasse e não se esquece, é claro, de opinar sobre todo o espectro de temas e matérias do universo
Multiplicando por muitos milhões este tipo de cardápio, é hoje possível ter acesso a um somatório de registos que, em uníssono, visa sobretudo uma única coisa: chamar a atenção (abrindo o nexo das coisas privadas, de lés a lés, até às dobras do infinito). As multidões dos nossos tempos padecem de antropofobia e para suprir os males desta tarefa delicada que é existir lá vão contando os ‘likes’, um a um, para depois se entregarem a conjecturas e a mil fantasias e assim se imaginarem a exceder o inadiável.
As multidões do nosso tempo andam francamente mais atentas à gazeta dos cardápios que produzem do que a notícias que se referem a coisas ditas reais, do género “só em 2018, registaram-se 18 tiroteios em escolas norte-americanas de que resultaram a morte de mais de cem jovens”. Na maioria destes casos, curiosamente, pelo menos é o que dizem os peritos, os assassinos só pretendiam chamar a atenção sobre si. Sinal de uma era que carece de caixa de velocidades, já que tudo converge nesse apressado passo de sentido único chamado Narciso.
Passemos então a um veículo ainda com mudanças e embraiagem e recuemos três décadas, pois faz bem sair do casulo dos ‘posts’ que, coitados, nascem e morrem em menos de 24 horas (lembremo-nos de que os seres vivos do nosso planeta com a vida mais curta são uns microinvertebrados aquáticos de nome gastrotrichas que, apesar de tudo, vivem três dias).
Convido-vos, pois, a entrar num filme intitulado ‘Thelma e Louise’, realizado por Ridley Scott (1991). Para possível espanto de todos nós, eis que as duas protagonistas, logo no início da fita, decidem tirar uma “selfie”. Na altura, esta palavra ainda nem sequer existia e a espontaneidade com que o acto decorre nas imagens em movimento pode hoje ser interpretada através de um contexto que na altura toda a gente ignoraria. A polaroid tinha nesta época uma única virtualidade: a revelação imediata em papel sem ter que esperar pelos ofícios da impressão. Era um aceno mágico, lembro-me bem.
No filme, a fotografia testemunha a decisão das duas mulheres em cena. “Estamos aqui e decidimos partir em viagem”, diria o balão se estivéssemos a bordo de uma narrativa gráfica. As personagens redescobrem-se a si mesmas de modo autónomo e estão decididas a fazer o que for preciso para chamar a atenção de quem as vê. Aquele é o seu momento. Mal podiam Thelma e Louise imaginar que, um quarto de século depois, as “selfies” se iriam tornar no símbolo maior deste narcisismo epidémico que faz dos adultos crianças a desintricar os muitos acervos de fases como a oral, a anal, a genital e outras latências que deixariam Freud a quebrar bilhas de barro na feira do relógio (‘hello hello, I´m here, look at me please!’).
Tal como escreveu André Gunthert*, a “selfie” é o ídolo por excelência da “ideologia da desconexão”, na medida em que ilustra o absurdo de uma vida excessivamente documentada que contrasta com os vazios de um tipo de comunicação que jorra a partir da auto-promoção forçada. A “selfie” traduz ainda o colapso actual da ideia de contexto e propõe, ela mesma, contextos próprios como forma de incitar à interacção pela interacção. É verdade que a tentação de o fotógrafo se tornar no fotografado surgiu com os ‘self-timers’ no início do século XX, tendo a Kodak Retinette, umas décadas depois, criado o temporizador automático. Após as muitas e ruidosas ufanias do Plano Marshall, o turismo estimulou a exposição dos fotógrafos viajantes ao lado das contingências geográficas como se os dois fossem um único super-alarve. Daí até hoje, um vulcão imenso explodiu.
A novidade dos nossos dias é que o tremendo excesso de captação fez com que o espaço fotografado se confundisse com uma verdadeira metástese planetária. A fotografia, o fotógrafo e as coisas diluíram-se de tal modo que a fotografia, como sempre a entendemos, quase deixou de existir.
O mesmo se pode dizer das antigas gazetas, dos jornais e de outros media. O espaço em branco que diariamente preenchem também se transformou em redundância. O rumor do rumor dos acontecimentos excede em muito tudo aquilo que virtualmente os fez (e faz) existir. As meta-ocorrências estão de tal modo a diluir-se na imaginação global das pessoas que as notícias quase, também, que deixaram de existir. Com raras e preciosas excepções, restará um fluxo ensurdecedor (com a palavra “fake” a pronunciar-se cada vez mais, apenas para que se possa conceder algum sentido às obstinadas quebras de lógica).
O mesmo se pode igualmente dizer das pessoas comuns – todos nós, afinal – que se diluem nas redes sociais no dia-a-dia como forma de dizer ‘eu sou’/‘eu estou aqui’. Quase que deixam de existir todos os dias, para voltarem, na manhã seguinte, a tentar ofegantemente respirar de olhos arregalados num novo post.
Os Toltecas faziam igualmente sacrifícios para que o sol nascesse depois de cada noite. A fé impunha a morte, mas agora o “temor e o tremor” parecem repetir-se. Compreender a fé é na realidade um absurdo, mas ainda mais absurdo é praticar uma fé (dir-se-á que é o caso dessa fé cega que consiste em ‘comunicar por comunicar’) num mundo que dela radicalmente se apeou, para dar lugar à liturgia da atenção inebriada.
GUNTHERT, André. The consecration of the selfie. A cultural history, L’image sociale [Em linha] Nº 23 (Janeiro 2019), Disponível em http://imagesociale.fr/1413 [Consult. 23 Jan. 2019]